Meu amigo acabou de morrer. E eu não sei o que fazer.
Uma metáfora sobre a morte, o mar, destroços e amor.
Morreu Ramón Masats, um dos meus fotógrafos favoritos que muito me inspirou:
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Não adentre a noite apenas com ternura.
A velhice queima e clama ao cair do dia.
Fúria, fúria contra a luz que já não fulgura.
Embora seja sábio, no fim, a escuridão que perdura,
Pelas palavras que já não reluzem à centelha tardia,
Não adentre a boa noite apenas com ternura
Ao bom, no fim, chorando com tristura
Suas fracas ações, na dança que as brilharia,
Fúria, fúria contra a luz que já nao fulgura.
Ao livre, qual sustou o sol, do voo, com fartura,
E aprendeu, tarde, que assim seu caminho afligia,
Não adentre a boa noite apenas com ternura.
Ao sério, rente a morte, que vê com negrura.
A cegueira pode, qual cometa, queimar em alegria.
Fúria, fúria contra a luz que já nao fulgura.
E a ti, meu pai, rezo eu, que de triste altura,
A mim pragueais e benzeis, com sua lágrima bravia.
Não adentre a boa noite apenas com ternura.
Fúria, fúria contra a luz que já nao fulgura.
Dylan Thomas
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Há 13 anos atrás, um usuário postou isso no Reddit. O Reddit – se você não andou na área – é um modelo de forum que nunca ninguém entendeu direito mas que serve de referência para tudo:
r/Assistance • 13 yr. ago • 855 replies
My friend just died. I don't know what to do.
Sem prolengômenos, sem rodeios, sem elaboração além do título – que por si só se basta e se completa na dor lascinante de uma perda.
Um membro do grupo, chamado GSnow, respondeu.
E essa resposta reverbera até hoje em muitos tópicos e se tornou um manual de instruções sobre os passos do luto, sobre as pernas da desgraça que é sentir uma saudade infinita de uma perda que dói a cada respirada.
Aff tá em inglês mas traduzo aqui de forma livre.
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Meu amigo acabou de morrer. E eu não sei o que fazer.
Sou um velho. Isso, por si só, significa que eu sobrevivi (até agora) nesse mundão e muita gente que eu conheço – e amei – não. Perdi amigos; melhores amigos. Conhecidos, colegas de trabalho, avós, mãe, parentes, professores, mentores, tutores, alunos, vizinhos e uma pá de gente. Eu não tenho filhos, e não posso sequer imaginar a dor que deve ser a de perder alguém tão importante fora da sequência natural da vida.
Eu bem que gostaria de dizer que você vai se ‘acostumar’ com a morte. Nunca me acostumei. E não quero me acostumar. Quando alguém amado morre, a notícia me dilacera e me destrói, não importa como. E as cicatrizes e as marcas que ficam são uma prova de amor e da ligação que eu tinha com essa pessoa. E se essa cicatriz é profunda, assim também o amor o é. É isso. Cicatrizes são as marcas testemunhas de uma vida. Cicatrizes são testemunhos de que posso amar intensamente, viver intensamente e se arranhar e se cortar e se dilacerar e saber que vou cicatrizar e tudo vai sarar e vou continuar a viver e amar. A cicatriz é uma área corporal muito mais forte e grossa do que a pele original jamais foi. Cicatrizes são marcas de um testemunho de vida. E são apenas feias para quem não as enxerga.
Quanto ao luto, você vai perceber que vem em ondas. É como um barco que se rebenta no mar; você acaba na água, se debatendo, quase se afogando; há muitos destroços ao seu redor. Tudo que bóia no seu campo de visão – enquanto você se debate – lembra a beleza e a imponência que o barco já foi e não é mais. Não há nada que possa ser feito; há, na verdade. Boiar, sobreviver. Você só pode boiar. E enquanto bóia, não se afoga. Encontra um pequeno destroço e você se abraça nele, descansa um bocado. Talvez seja um objeto, uma fotorafia, uma lembrança gostosa. Talvez – quem poderia imaginar? – seja uma outra pessoa que também boie a deriva. Por um tempo, tudo o que se pode fazer agora é boiar, ficar a deriva, sobreviver.
As coisas ainda estão complicadas. Ondas de 30 metros de altura vão arrebentar em cima de você. Ondas pesadíssimas, caudalosas, cruéis na sua essência. Vêm em intervalos de 10 segundos, rápidas, intensas, não te deixam recuperar o fôlego da sarrafada anterior. Você só pode pensar em segurar as pontas e não se afogar. Mas depois de um tempo – talvez semanas; meses – você percebe que essas ondas gigantes de Nazaré com seus 30 metros de altura que continuam arrebentando na sua cabeca, não estão mais intensas nos seus intervalos de 10 segundos. Tem agora um espaço maior para se recuperar o fôlego. Elas continuam com a mesma força te destroçando a cada arrebentada. Tem um espaço maior para recuperar o fôlego. Tem um espaço agora para você raciocinar.
No final das contas você nunca saberá qual, quando e como é o gatilho que vai destampar o luto. Pode ser uma música, uma foto, uma esquina, o cheiro do café recém coado. Pode ser qualquer coisa. E qualquer coisa é essa onda de 30 metros de Nazaré que vai arrebentar novamente na sua cabeça, com a mesma força que vai te destroçar. Mas entre as ondas, agora há vida.
Entre as ondas há vida, e em algum momento você percebe que as ondas agora são apenas de 25 metros. Quiçá 15 metros. E elas continuam vindo, continuam quebrando em cima de você. Agora a freqüência melhorou, o espaçamento melhorou. Você consegue vê-las no horizonte. Estão lá: o aniversário, um natal, o pouso no Santos Dumont onde vocês sempre escolhiam a janela da direita para ver o Cristo e o Pão de Açúcar. Você consegue ver as ondas. Você consegue se preparar, consegue sentir a potência, sabe até como furá-la tal e qual um surfista e não levar um caldo homérico. Sabe que vai sair do outro lado. Encharcado, tossindo, diminuído pelo tamanho dos destroços que ainda estão ao lado. Mas você sai do outro lado.
As ondas nunca param de vir. Sei bem como é porque sou um velho marujo nesse mar destroçado. E de alguma forma você não quer que elas parem. Você aprende primeiro a sobreviver nas ondas. A furar as ondas. Muitas outras virão, você vai sobreviver, olha só! E que elas não parem. Com sorte terá muitas cicatrizes amorosas, muitas marcas profundas.
E muitos naufrágios em águas desconhecidas.
(traduzido do jeito que eu entendi; caso queira sugerir melhorias, senta do dedo na caixinha de comentários. )
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Recebidinhos do dia (em forma de novos aprendizados). Vi uns portugueses trocarem bofetáços no 𝕏 e em uma das respigüeladas ofensivas saiu-se o verbete ‘vendedor de banha de cobra’. Significa o charlatanismo no seu mais singelo núcleo.
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Preciso voltar a escrever, mas escrever uns textões maneiros; essa newsletter tá um livro de recortes dos outros o que eu não compactuo e eu não gosto. A escrita tem que ser uma tradição e um estilo, uma valorização da correria dos dedos no teclado. Tem que ter ritmo, tem que ter frequência e eu sou arrítimico e infrequente em perambular essas comarcas e freguesias.
Até terça.
A morte de um filho não é aceitável e jamais será compreendida.
Tem o encantador de serpente também que simboliza o embusteiro, enganador. Os portugueses têm ditados muito interessantes como “sua porca trapaceira” hahaha