0004/ Pretérito mais-que-perfeito
Acho que cometi um erro funcional com amizades pessoais desde que abandonei o Brasil.
Leia escutando Rosinha de Valença, a quem você nunca ouviu falar. Foi uma das violonistas mais proeminentes da música contemporânea brasileira. Depois procure/baixe/salve esse groove boogie de 1971 - cowbell torando seco na radiola.
Parece mais uma das minhas teorias sem sentido e que no final só cheiram a chapéu-de-papel-alumínio roteando a 5G mas acho que essa tem algum fundo razoável para explorar.
Abandonei muitos contatos com amigos desde a grande crise política de 2016, quando a pressão começou a puxar todo mundo para os extremos. Ninguém que ficar no meio-termo da briga (um lugar chamado ‘no man’s land’ porque é onde rola bala cruzada, claro) e a polarização fez com que os ânimos puxassem essas bordas bem longe uma da outra.
Não que eu tenha muitos amigos, e isso é ruim pra caramba porque sou um cara estranho e minhas amizades tendem a ser complexas e instáveis. E eu tenho o dedo podre para arruinar amizades de uma maneira bem pragmática.
Tentei relevar no começo: ‘ah, ele é um cara foda desde outrora, só tá possesso’. Não deu certo não. As conversas todas envergavam para a politica viciada do favoritismo e no final das contas a cegueira ideológica cimentava o debate.
Fui apagando uns chapinhas das minhas redes sociais. Os soft blocks malandros que não fariam mal. Rede social é aquela coisa né, às vezes o cara está louco de pedra e posta umas coisas meio burras porque é o labrador semi analfabeto que sorri com bafão de osso.
Mas essa ceifação baseada em política fez um estrago tacanho porque em algumas redes eu perdi quase 80% dos meus conhecidos em debates diários.
Novamente cai na auto-comiseração e análise: seria eu o soldado que marcha errado enquanto o pelotão todo marcha certo?
Ou todos meus amigos mudaram o viés sócio-político e perdi o bonde?
Em 10 anos eu mudei um bocado. Mudar de pátria amada é um conflito mental diário. Tem uma velha conversa da barreira de idiomas, de cultura, valores, sociedade, desafios novos e uma infinidade de pequenas pedrinhas que insistem em entrar no sapato furado.
Aí com o tempo a pátria antiga começa a não ser mais amada como antes. E a nova não vai ser nunca seu terreninho de infância que sempre permeou as boas memórias.
Mas o bom de tudo isso é que a evolução é visível. As raízes agora cabem em um pote tokoname de bonsai e é fácil carregar para qualquer outra clareira ensolarada.
Se eu fizesse uma comparação do meu sistema operacional de 10 anos atrás com o atual, seria uma surra de bunda sem precedentes.
Política é um assunto essencial para mim, não me leve a mal. Eu trabalhei na política, com política e com os famigerados políticos. Circulei no olho do furacão em Brasilia. Recebi proposta de propina. Trabalhei com ministros e secretários de estados aqui no Reino Unido, conversei com nomes proeminentes da política internacional e – pasmem – estive na mesma sala de conferência virtual dividindo a tela com o Putin, Biden e Bolsonaro na COP.
Viés político é um motor inabalável. Tem toda uma rotina e deviações que em duas virgulas consegue mudar a história para sempre.
Eu não discutia política por birra. Em dois travessões eu já traçava o perfil do interlocutor e sabia se o que viria pela frente era um discurso enviesado e emocionado, supra-partidário ou adorno do fã-clube político pessoal.
Gosto dessa imagem porque ela mostra o cerne da conversa política: Não é ‘vira-voto’, não tem forçação de ideologia e o principal: a tentativa de entender mais do que convencer.
No final das contas desconfio que política brasileira se tornou briga de torcida organizada em porta de estádio. Os jogadores estão lá no vestiário vestindo fones de ouvido com excelentes supressores de ruído. E você dando bandeirada na cabeça de outro infeliz lá fora no valão.
Eu tenho medo de gráficos que mostram o declínio do número de amizades versus ficar mais velho. A luz da reserva acendeu. A pane seca é iminente. Meu velório vai ter meia dúzia de carpideira, o mendigo bêbedo engraçado e o cachorro amarelo. Meus amigos ou terão sido mortos em batalhas ou não existirão.
Aí entro na espiral devastadora do pessimismo que vez ou outra me faz tender ao caos social, a morte da cultura, o extermínio da humanidade, a guerra o rasgar de vestes o ranger de dentes.
Acho triste porque juro que tento ser um cara mais otimista e normal, mas o mundo me dobra com muita facilidade e minha entropia é nefasta nesse nível.
Tenho que buscar alguma alternativa. Eu perdi meus laços com o Brasil porque no final das contas eu saí muito puto com tudo. E agora vem a idiotice de recuperar o tempo perdido mas o tempo perdido não existe no meu passado porque eu não o vivi .
Talvez recriar umas novas sinapses com novas pessoas seja uma alternativa boa. Mas amizades são como amores depois de uma certa idade a gente tem tanto maneirismo e estranhices que não tem como se adaptar mais.
Comecei a seguir um monte de gente bacana nas redes. Uns gatos pingados com argumentos lindos, retórica bem alinhada, caráter, saca? E esse é o grande problema dessas redes sociais: o momento em que essa pessoa começa a se tornar uma velha conhecida, mas em uma via de mão única.
O cara nem sabe que você existe. E você conhece até o nome do meio do gato murisco que a vizinha dele tem.
Eu não sei como me aproximar das pessoas, não gostaria de estragar essa imagem que elas representam. Acho que calejei feio nessa. Tenho medo de levar um tapão na cara, levar uma atravessada de travessão de uma arroba que gosto muito e isso vai ser amargo e triste, uma moeda a mais de desgosto para o poço das amarguras que já brilha doirado de tantas moedinhas reflectíveis naquele fundo lodento.
Todo mundo é legal até que se conhece melhor. Esse é o chefão do final da fase que tenho medo de abater.
Esquizofrenia
Uma minha metade anda feliz
Longe de mim, feliz
Outra contemporiza de um lado
Bebe e fuma no bar ao lado
A última não toma partido
Não se mete nessa de espírito partido
if you see me grinning from
my blue Volks
running a yellow light
driving straight into the sun
I will be locked in the
arms of a
crazy lifeC.H.B -- one for the shoeshine man
O cara é o romero britto da poesia mas tem umas pinceladas certeiras.
"Se eu fizesse uma comparação do meu sistema operacional de 10 anos atrás com o atual, seria uma surra de bunda sem precedentes."
Vinte anos desde que comecei a acompanhar seus escritos nos diversos espaços que você já ocupou em toda essa internet (antes terra sem lei, agora cenário cyberpunk dividido entre o controle corporativo inescapável e a massa revoltosa que não sabe quem atacar e acaba massacrando a si mesma, com direito a outdoors flutuantes de gueixas em 3D) e ainda sinto uma inveja atroz da tua escrita.
Inadmissível.