0006/ Reclamando o supremíssimo cansaço
A melhor poesia sobre a morte é tão somente o silêncio.
Para ler, ouvindo: Guarapuava-tchê (Aos Velhos Amigos) de Rodrigo Simões.
Rodrigo é um musicista québécois com uma base sólida em cordas –especialmente mandolim e guitarras – e que mostra uma pegada fusion de jazz com groove brasileiro. O estilo é bem centrado na ritmicidade mais sonora: samba, chorinho, maracatú e o balangodango do forró.
Essa música ‘guarapuava’ é a cidade onde ele passou parte da infância e adolescência no meio do paraná; quiçá nato [carece de fontes]. A gente estudou juntos no mesmo colégio, fomos escoteiros. Lembro que eu gostava de ir na casa dele porque ele tinha um caminhão-centopéia:
Não sei o porquê dessa lembrança mas é assim que minha caixa de memórias de processamentos funciona.
Crime vai, crime vem e eu trombei com uma música no Spotify, fui procurar o autor e quando vi o nome dele uma série de cartões de fichamentos do meu passado começaram a cair igual um castelo de cartas.
Era mesmo o caba, mudou para o Canadá e lá se firmou como músico. Mas o interessante é que eu não fiz ainda um contato formal com ele e acho que talvez isso nunca ocorra fica ele lá eu aqui e o mundo que segue sem muita razão vai regindo meu pessimismo padrão.
Tem coisas que moram muito bem no passado e não valem a pena tirar da soneca de cobertorzinho para a realidade desgastada.
Esse pessimismo padrão é quase um cansaço.
Cansei de tudo. Cansei de mim. Da eterna esperança de melhorar. Do senso de humor ácido, do politicamente correto, da política. Eu quero só esquecer o passado, relembrar poucos detalhes simples em um mar de tristeza e choramingos.
Quero sentir o abandono, o esquecimento por sumiço gradual. Eu cansei de esperar o momento certo. O momento certo nunca existiu e nunca vai se mostrar pronto.
Querer é errado, também. Nunca soube querer algo, desejar algo. Invejei, talvez. Mas minha vida de inspirações não se mostraram eficientes para mudar meu estado letárgico esperançoso.
Coloquei minha inspiração em uma caixa qualquer, Embrulhei em um papel grosso, escrito à caneta atômica: para rever quando tiver tempo. E o tempo nunca será certo, porque é esperançoso e gradual.
Meus sapatos se arrastam como o ar espesso e seco do sertão em um dia esquecido e sem esperanças. Meus joelhos doem a impraticabilidade de reclamar e resignam.
Minhas amizades duram tanto quanto uma flor recém colhida, sufocada e sem vida. A amizade é uma fuga injusta da solidão e do ostracismo. Amigos são tristes, amizades são instáveis.
Espero um dia olhar para um passado seletivo.
Espero um dia olhar para minha imagem no espelho e perceber o quanto esperei por algo que nunca soube o que era, por algo que eu desejei e não persegui.
Observo o sucesso e a conquista alheia. Muito me é bonitinha, mesmo. Ali a vida deve ser muito boa, só pelo fato de não ser minha. As fotos bem ensaiadas, a pele curtida de sol, o sorriso de quem não se preocupa porque tudo é mansidão e sossego.
Sigo pela rota mais singela do cansaço de existir. Não tenho rumo certo e meus sentimentos bóiam em uma deriva espessa e sem ritmo. Já reclamaram da minha negatividade. Já me deram o toque. Você é muito niilista, não sou não e segui negando algo que não tive a pachorra de tentar relembrar em que se baseava, o jazz rasgado chora perto de um bom copo de malte puro. O que me fez gostar de malte puro, o que me fez apreciar cerveja preta?
Eu tenho uns estagiários que admiram minha arte e minhas piadas. Um grupinho deslumbrado fedendo juventude e hormônios e boa vontade e com uma cabeça pura e aberta para se jogar boas sementes de deturpação moral e ética. Eu admiro essa força toda, eu era pior quando tinha esses vinte e poucos anos e sei bem o que é saber de tudo quando não se sabe porcaria alguma.
Eu tive que explicar o que era um fax para esses destrambelhados. Um email que vai por telefone e é impresso na hora, não precisa de aplicativo nenhum, nenhum? nenhum, mia fia, só enviar que imprime lá do outro lado, as vezes fica o papel esperando alguém pegar e entregar a quem de fato é o destinatário, e se alguém que não deveria ler, ler o fax, aí você tem que saber pra quem está enviando e pensa aí comigo ninguém enviava nudes por fax igual vocês fazem toda a hora.
Educação é vocação e descobri que não tenho um pingo de paciência em passar conhecimento. Não confunda com ciúmes ou com a disseminação de boas práticas, jamais negaria. Não sei mesmo como ensinar, talvez porque meu aprendizado fôra uma bola ovalada rodando em um zigue-zague frenético e caótico onde, sabe-se lá por que cargas dágua deu certo de vingar em algum momento da minha vida.
Eu queria ter estudado mais quando era pequeno. Dias atrás percebi-me voltando ao passado e tentando refazer coisas do jeito certo, as aulas de violão que nunca tive, a tentativa de auxiliar o japonês do estúdio fotográfico, as aulas de história, literatura e gramática que me eram um saco e que agora sinto saudades porque faltou muito.
Inclusive sinto falta de umas aulas de teatro que eram um projeto piloto que me obrigaram a fazer e eu fiz com raiva justamente porque era obrigado e agora vejo que aquilo teria sido uma boa forma de aprender expressão e contato humano. Não devo, não temo e dá meu copo que já era.
Sempre defendi que os grandes e gloriosos momentos da vida nunca são notados na hora em que ocorrem. Não digo essas futilidades idióticas como receber diplominha ou um troféu e um aperto de mão e uma saraivada de palmas artificiais forçadas.
Os gloriosos momentos são sempre notados anos depois, em um estalo primordial, uma epifania sentimental que explode deliciosamente em saudosismo. Até o suspiro acompanha.
Meus gloriosos momentos estão seguindo em uma curva descendente e de ritmo lento.
E minha vontade do abandono é a minha vontade de querer se isolar e seguir para aquelas ilhas estranhas tal e qual Tristão da Cunha, não o navegador mas a sua ilha homónima que fica no meio do nada e que tudo lá é o píncaro do desalento sentimental.
Meu cansaço é um cansaço de tentar e nunca conseguir nada e se perceber um nada absolutista que não deu porque não era para dar mesmo, paciência.
Ainda tenho uns projetos engatilhados porque a teimosia é meu ponto forte. Muitos em uma lista para não esquecer nunca. E tenho a postagem na internet em qualquer meio digital porque é meu último resquício de que um dia tentei escrever e não funcionou como era para ser. E sigo desmoronando como as boas margens que sucumbem a cada enchente devastadora.
Tento referenciar tudo o que crio me orientando pela palavra mais do que através da imagem. Fotografo e desenho como um escritor sensato: gramático, silencioso, coeso, pausado, cadencioso.
Mas aqui tem um problema que tenho me desvencilhar constantemente que é construir um estilo fileteando o melhor pedaço de cada virtuoso que admiro.
Construí muita coisa sozinho mas meus melhores trabalhos sempre foram criados com gente mais sabida do que eu. Equipe, produção, direção técnica. Errava muito no começo, acerto muito mais agora. Sei quando é mais importante usar a intuição que a referência.
Acho que cheguei até aqui assim, tentando dar uma condução sensível e intensa a cada obra, cada foto boa, cada projeto entregue ao cliente, os arquivos enviados para a pasta ‘becape trabalhos finalizados’.
O lugar que eu quero estar é aquele que acho que sempre estive: apaixonado e empolgado, ingênuo e cheio de sede, fazendo arte estranha, umas fotos conceituais que não saem como deveriam e ficam boas por acidente. Trabalhos cheios de defeitos, mas tão potentes. Fazer do jeito que dá, do jeito que se sabe e do jeito que é.
Foi por isso que eu deixei de ser o que nunca fui e sempre quis ser.
Isso ditou Laozi ao guarda Yin Xi, antes de atravessar a grande muralha para nunca mais ser visto:
02
sob o céu
conhecer-se o que faz o belo belo eis o feio!
conhecer-se o que faz o bom bom eis o não bom!
portanto
o imanifesto e o manifesto consurgem
o fácil e o difícil confluem
o longo e o curto condizem
o alto e o baixo convergem
o som e a voz concordam
a anverso e o reverso coincidem
por isso
o homem santo cumpre os atos sem atuar
pratica a doutrina sem falar
as dez mil coisas operam sem serem impedidas
nascem sem serem possuídas
atuam sem serem dominadas
concluída a obra ele não se atém
e só por não se ater ela não se esvai
Tem muita gente boa morrendo ultimamente inclusive amigos e conhecidos que de alguma forma moveram meu bastião de sentimentos. Pensei e pensei muito em palavras de conforto mas a morte é a morte e não sei se há coisa a se fazer que não seja se aquietar.
A melhor poesia sobre a morte é tão somente o silêncio.
Foi assim que decidi sentir a dor do momento e se desvencilhar de quaisquer obrigações não verbais. Parem de morrer um pouco. Dói pensar no passado estático sem um futuro dinâmico.
(...)
"Outro método útil [no metier da Injúria] é a mudança brusca. Por exemplo: 'Um jovem sacerdote da beleza, uma mente embebida em luz helênica, um refinado, um verdadeiro homem de gosto (de rato)". Também essa quadra da Andaluzia, que num segundo passa da informação ao assalto:
“
Vinte e cinco pauzinhos
Tem uma cadeira
Queres que a quebre
Nas tuas costelas?
”
consoante .R.&.S. em "Arte de Injuriar"
Curti o Rodrigo Simões. Um cheirinho de Gotan Project no fundo.