0008/ A hora mais escura é a hora mais dura.
A caça o caçador são cúmplices da mesma encenação.
Ontem, na tela grande, Scorcese e Goodfellas (Os Bons Companheiros no Brasil). Dos filmes bons e ruins ao mesmo tempo. Indicado para 6 óscares (‘oscaritos’ segundo Pedro Nunes) na edição 63º da Academia, perdeu para Danças com Lobos do Kevin Costner.
Mas no meio da troca de socos de Niro, Pesci e Liotta, a música original mais interessante da versão mais chata de todas as trilhas sonoras do TikTok ecoou forte com Remember (Walkin’ in the Sand) das Shangri-Las, para ler ouvindo:
Nota do editor: cultivo com adubos orgânicos uma playlist no Spotify chamada 🤯. Versões originais de músicas famosas que de alguma maneira nasceram tristonhas e ganharam espectros amplos.
sentado no jardim, caíam-lhe as últimas idéias trazidas pelos ventos do bom senso. Eram imagens estranhas de fatos que misturavam pessoas, lugares e tempos. Não lembrava se conhecia tudo aquilo. Na hipótese mais aceitável eram fantasmas trancafiados e clamantes dentro da gaiola do pensamento. Estendiam os braços, comprimiam as faces através das barras enferrujadas e escuras, pedindo algo na língua das multidões. Chegava mais perto e os espectros quase o seguravam pelas golas, pedindo ajuda ou propondo revide.
punha as mãos ao rosto e o máximo efeito conseguido era o de clarões na escuridão, quando se comprimem as órbitas. E era isso o que realmente havia feito por longo tempo, tentado encurtar os percursos, achatado os caminhos e havia conseguido o efeito dos bólidos que caem na noite. Um traço entre as estrelas, um risco na infinitude. Riscar o infinito era viver, saborear os caprichos do tempo, nada mais. A idealização suicida a realidade e martela na oficina do juízo as fôrmas das asas de metal. Para que essas idéias agora? Precisava parar de pensar, precisava parar de cair daquela imensidão de onde o choque era questão de espera. E tinha a mesma sensação de aguardar um prato feito com o próprio fígado.
mutabor, mutabor. Mesmo com a mudança seria a águia do próprio martírio, acorrentado ao cáucaso da verdade. Me encare, me encare, dizia a realidade de dentro das flores, pelo grito das aves, pelo som da água. O que era inanimado confirmava em silêncio.
ergueu-se como se levantasse o peso de um homem. Deu de costas para o cenário e caminhou em direção ao veículo. Atravessou o túnel de bambus e avistou o carro escuro. Já podia ver um corpo encostado à porta, braços cruzados à espera de uma resposta, que via o homem que se aproximava pelo caminho de bambus e o olhava indiferente.
descruzou os braços quando o projetou a três passos de distância. Moveu alguns músculos da face antes de afirmar:
— Sabemos que foi você.
o outro engoliu em seco à espera do tempo para pronunciar alguma coisa. Qualquer palavra que dissesse não alteraria o curso dos acontecimentos. Estava tudo feito, consumado, trancafiado agora no passado. Sim, trancafiado... Agora podia lembrar de algumas coisas. Começava a reconhecer alguns rostos, escutava as vozes mais nitidamente, os rostos contraídos começavam a fazer algum sentido. Fazer sentido não é exatamente a idéia que as pessoas geralmente têm. Abstraiu-se novamente ao pensar no que se fazia de original, de novo, na vida de cada uma das pessoas que conhecia. Espremia-se o sumo do dia e encontrava apenas a rotina e o lugar comum. Repetições que giravam como carrosséis, tocados por um sádico ensandecido.
expirou ruidosamente, tentando exibir, em vão, algum sinal de vitalidade.
— O que você quer?
— Confirmações.
confirmações eram conformações da realidade, pensou num trocadilho rasteiro. Puxou a cigarreira e ofereceu-a, apenas para ouvir uma negação fria. Não negou para si mais uns tragos, esvaecimento que lhe era tão familiar de uns tempos para cá.
acendeu e aspirou.
— A uma altura dessas, os fatos falam por mim. Não preciso fazer nada além de assistir como todos, confortável em uma cadeira na sala de estar.
percebia-se uma mistura forçada de cinismo e ironia.
— Não teria tanta certeza.
cortou o julgamento com um pergunta.
— Você gosta de caçadas?
— Qual parte?
— Como qual parte? — Riu-se curioso.
— A caçada só tem um lado, meu caro. A caça o caçador são cúmplices da mesma encenação. Não daria o menor prazer se a presa se mostrasse aos algozes naquele momento de preparação, sem que ninguém houvesse adentrado na mata, ouvido a própria respiração e sentido a palpitação de ser o senhor da morte. De beber o sangue, de queimar o mais fraco pelo sabor agridoce da destruição. E por que não o faz? Porque a própria presa tem um pacto prazeroso de apostar que pode vencer o duelo. O êxtase impera dos dois lados. Falo alguma impropriedade?
as vozes tornavam-se cada vez mais nítidas, porém não conseguia, ainda, delimitar os interesses.
— Alegorias fazem parte da caçada, então?
— Como queira — respondeu após notar que se envolvia num raciocínio que era já sabido ser do outro. E todo esse entendimento de nada serve agora. Via-o estender o braço em direção à fechadura do veículo e percebia mesmo que abria caminho a isso. Viu também quando a porta foi aberta e sentiu-se desconfortável ao perceber que tudo diante daquele homem era inevitável, um magnetismo que só fazia dizer e executar o sim por quem tivesse ao redor. Enquanto engolia a presença, ficava imóvel na calçada a ver seu interlocutor distanciar-se sob as sombras das árvores. A presa havia se atirado diante de seus perseguidores antes mesmo do início da caçada.
A carmen figuratum from Dylan Thomas’s Vision and Prayer
Who
Are you
Who is born
In the next room
So loud to my own
That I can hear the womb
Opening and the dark run
Over the ghost and the dropped son
Behind the wall thin as a wren’s bone?
In the birth bloody room unknown
To the burn and turn of time
And the heart print of man
Bows no baptism
But dark alone
Blessing on
The wild
Child
Comprei esse postal das mãozinhas rápidas de um berchior francês em um bricabraque da cidade de Rye, na inglaterra do sul:
O incauto leitor pode achar que oras, apenas um postal qualquer mas não se engane: Salto Curucaca era uma cachoeira perto da minha casa de infância, no terceiro planalto paranaense. Uma bicicletada hercúlea de uns 50km que durava um dia inteiro no meio de um sobe e desce desgraçado que é o relevo paranaense da metade ocidental.
Mas o postal é interessante. Um francês fedorento reclamando o supremessíssimo cansaço que era transitar o brasil continental em 1927, olha só. Infelizmente ele deve ter comprado um postal aleatório em Curityba e rabiscou com o resto de raiva que sobrou, sem saber onde eram as cataracts iguazu do fotopostale.
gosto de listas e vou citar alguns fatores que me fazem juntar coragem para escrever.
Escrever para não morrer. (García Marquez)
Não há mudança sem a escrita.
Escrever é facílimo. Ou impossível. (Faulkner)
É um exercício gratuito e sem limites.
All sorrows can be borne if you put them into a story or tell a story about them. (Blixen)
Compartilhar ideias e pensamentos. Mesmo quando estão todos poluídos e errados.
A escrita atrai a criatividade alheia.
A Internet cresceu na disseminação do conhecimento escrito.
Escrever é oficializar mentiras.
Os bons leitores têm sede de leitura boa. Vibram quando acham bons escritores e compartilham até as migalhas.
tem um curta antigo – do período nebuloso das manifestações brasileiras que dicotomizaram os vértices políticos – chamado ‘a hora mais escura’ de um diretor de cinema chamado Renato Cabral, com uma trilha sonora muito bem feita pelo Shirakawa.
2013.
A hora mais escura é a hora mais dura. Onde todas as bandeiras são em vão. As bombas, os gritos, os tiros. A multidão junta, a multidão em cada um. Esse preço que sempre se pagou, e nunca se recebeu nada em troca. Ela não precisa ser a hora tardia nem a hora vazia.
Ele é um vídeo coringa. Serve para qualquer situação de terror, nacional, internacional ou político.
Revisando a passada de imagens dá para ver a confusão ideológica indispensável para o entendimento de todo o desdobramento cívico e moral da atualidade. A bandeira brasileira era ainda uma provação e não um sortilégio. O zero-vinte era razão; vir para as ruas era um grito resfolgante.
Mas, ao mesmo tempo é a minha visão de desdobramento vista de longe, então acrescente o deturpamento da variação de realidade paralela do autor ausente.
São dez anos, isso.
Isso tudo?
Tudo isso.
Tempo mano velho.