Para ler, ouvindo: um jazz. Wayne Shorter foi de arrasta para cima aos 89 anos, agorinha. Tocou no quinteto de Miles Davis e só isso já bastava no seu currículo. Fez um disco no natal de 64. Sobre caça às bruxas; a serem queimadas. Shorter chegou ao estúdio com 6 novas faixas, prontas. Todas gravadas em um ou dois takes no mesmo dia. Speak no Evil. Bluenote, como deveria ser. Alinhavou tudo com Freddie Hubbard, Herbie Hancock, Ron Carter e Elvin Jones.
O sentimento humano mais interessante que existe é a preguiça. E o fato de que a maioria das pessoas são preguiçosas. Falo da preguiça no mau sentido mesmo, aquela sedentária-obstruída e que faz todo mundo postergar qualquer projeto por tempo indefinido.
Gosto da preguiça. Nos outros. Gosto de ver gente preguiçosa. É uma sensação que me acalma. A preguiça gera o eterno atraso, o deixa para depois, a paz.
A preguiça que deixa tudo para a próxima segunda-feira. A preguiça que te faz adiar por mais 6 meses aquele cursinho interessante de iquebana ou de embrulhos de presentes ou de idioma em outro alfabeto.
Essa preguiça é essencial. Ela dita dois teoremas básicos: de quem vai se descolar da baba-tépida e gosmenta da inércia e começar algo; e de quem não consegue se desvencilhar dessa gosma quentinha.
A preguiça existencial é um pouco mais complexa: ela diz se a criatura vai apenas existir ou se a sua vida vai tomar algum sentido real.
A estabilidade é a base da preguiça. A sensação de que o vento não te balança mais e de que nada ao seu redor pode ruir é a base estável favorável.
Não ter mais interesse com a leitura de um livro, com uma partida no jogo de xadrez ou com um simples texto largado em uma revista, no jornal ou na newsletter recém assinada e nunca lida é impaciência. E impaciência só mostra que a abertura para novas ideias atrofiaram.
Gosto de ver gente com pensamentos lentos. Pessoas com a vida parada. Gente que pensa ‘nossa eu conseguiria criar uma coisa assim’.
São os preguiçosos quem mais me inspiram e me inquietam.
E não me deixam morrer de tédio.
Como seguir vivendo se todo momento é agora, se todo lugar é aqui, se todo pensamento é compartilhado, por mais insignificante que seja? (…)
Eram apenas figurinhas num banco de dados dedicado a gerar receita com publicidade. Uma horda ávida por tagarelar sem ponderação alguma, emitindo opiniões compulsivas sobre qualquer coisa como se esse desespero servisse para confirmar sua existência. Discussões em que o único objetivo é vencer, sem nenhum espaço para a empatia, nenhum sinal de reconhecimento do outro. Vence quem posta o primeiro comentário ou afeta o descaso mais sarcástico, a ironia mais rasteira, substituindo qualquer vestígio de emoções humanas genuínas. Uma vida inteira reduzida a um jorro de texto que não passaria pelo crivo do filtro de spam mais rudimentar.
Digam a satã que o recado foi entendido, Daniel Pellizzari
Então preparamos um grupamento de especialistas nas coisas terrestres e saímos à procura do ente ou sujeito material que tivesse a perfeição em todos os requisitos. O que de tudo que representasse o pensamento humano em sua forma mais abstrata. Eram as qualidades observadas: grandeza moral, capacidade de transformação intrínseca, poder de modificação externa, a beleza, a plenitude, a intemporabilidade, a sapiência, a ponderabilidade e o amor. A única indicação vinha de uma pictografia de 2087 anos atrás que relatava a comoção de um antigo andarilho em seu painel diante de um claro embutido em um contorno de montanhas, rios degelados, vegetação abundante, formações rochosas e céu. O andarilho só falava mediante o choro e tinha a mirada que não estava mais nesse mundo. Parecia que via através de uma janela ou portal aquela imagem que havia lhe enchido os olhos da alma e seus olhos eram as próprias janelas abertas para essa realidade que agora fazia parte de sua essência. Havia sentido uma presença não compressiva, porém plena, em sua permanência naquele vale escarpado e falava exatamente isso aos outros homens por meio de versos. Um deles furou o esmeril do tempo e chegou ‘a modernidade antificada:
Pleno em m’ a cheiança
Uivo em vent´quirá em sempre
Al cair de um turbínio sempre
Ao profundict de um Scarpa grota
Sou aquilo que chamam tudo
Sou o Tudo a que chama o fogo
As pistas levavam a uma entidade potente e natural. Filho da Terra, esse era o espírito que havia adormecido sob pressões 300 milhões de Gogols vezes 720 mmHg e a temperatura havia transformado sua tez em diamante. Escapado agora das hiperbárias, flutuava ancho pelos mais belos recantos do planeta, sem medo algum.
Sentou em uma posição de budinha. Não sei se ‘sentar’ seria a formação verbal correta, pois ainda em uma suspensão enigmática nosso ser pânteo flanou estático e se engalfinhou sereno entre oito mãos que assim o protegeram.
Eis que a expedição havia sido alforjada no escopo da avaliação mera. Mero era e puro o interesse. Tão simples para se ombrear com a pureza que havia encantado o andarilho milenar e assim permitir um entrosamento com o espírito na medida da coisa miscível.
Assim em 67 dias corridos do ano passado, evadiu-se dessa chã um legião de peritos naquilo que a alma do homem costuma transitar: em direção ao absurdo. E o absurdo por mais absurdo que seja, era a realidade que nunca poderia ser explicada de forma convincente.
Mais deu uma preguicinha!