0012/ Corto Cabelo & Pinto.
Gün | Velha casa | Javol | Albino Junior | Tucunaré engraçadinho.
Para ler, baloiçando o abobréte: Altin Gün, psicodélico turco. Deslocados em Amsterdã. Guitarra frenética vocal suave, ritmo forte.
A velha casa da ladeira de pedras, de número qualquer, retrato fidedigno da vida estancada na currutela que nem vila era. Sertão árido de salitre. Tinha calçamento irregular demais para a liberdade correr sem tropeçar.
As paredes externas da casa velha retinham tintas vermelhas de várias tonalidades e gerações que, pintadas umas sobre as outras em estrupício relaxo, criaram bolhas e tumores texturados que tentavam conter as rachaduras sem base alguma.
Janelas de madeirame empenado. A primeira, mais nova, não abria desde que fôra instalada no inverno seco de 72. Pedreiro escroque duma figa. Quando chovia, inchava. E quando inchava, emperrava. A segunda janela abria. Abria e era velha. E a velha senhorinha ridícula ali pairava, plantada por horas a reclamar da morosidade do vento que não mais assoprava como deveria.
O Albino Jr. da barbearia Javol, mentiroso que só, dizia que era ela a inspiradora da palavra peitoril, já que as muxibas caídas esparramavam-se por toda a madeira da balaustrada, realçando mais ainda as redondices e suas infindáveis dobras sebentas.
Nada na cidade tinha mais jeito. A diferença de temperatura média caía de maneira constante e chegou ao ponto em que a palavra hermética começava a se incorporar em artigo de previsão do tempo e arranjo climático. Assim não mais existia ali conceito de calor ou frio; o vento — como a velha reclamou — de fato parara de assobiar há tempos. Nem uma brisa, quem diria. Nuvens? Só carneirinhos de passagem e sem funções pluviais que as valessem.
Os velhos não geraram novos rebentos. O plantel dos chucros e irrequietos varrões dali se escafederam para novas paragens. Albino bem que alertara: aquela nota de 10 com um bigodinho no buço da princesa passou em sua mão por mais de 4 vezes naquela mesma semana.
Nos fundos da velha casa, o frondoso quintal de pedra e cimento queimado. As grossas paredes foram edificadas não nesse nem no outro século atrás. De pedras e uma argamassa areieinta que meu avô teimava em dizer que eram mistura de concha moída com banha de baleia preta. Colonial era o conceito porque parecia de fato uma construção mal feita e preguiçosa de uma casa boa portuguesa.
Não, não esqueço a melancolia dos atos vagos e mecânicos e inertes vascolejando velhos lembretes e lembretes ruidosos. Lembra? Era até o album de cromos. Ah, os cromos, como eram difíceis de retirar o auto-colante! E colava-os em seu caderno. Adorava te ver colando cromos, ornamentando-os em volta com hidrocores e amores, traços incontritos, por vezes tímidos. Por que não? E o quê você veio fazer aqui no meio do nada nesse tríptico mal pintado de memória sem razão?
O porão era de porta estreita. Emperrada desde sempre aquela entrada do porão. Tinha luz elétrica e uma tomada que sempre popocava uma faísca de aviso toda vez que se tentava ligar quaisquer eletros. Um toca-discos com duas caixas de som. Discos empenados, cheiro de mofo, umas aranhas que sobreviviam sem comida aparente. Teias velhas. Relaxadas.
O porão mostrou-me onde guardar as velhas e boas lembranças.
Melancolia da vida, ó, segura em uma mão trôpega e senil as lembranças não tão boas. Se boas fossem, não estariam em um porão. Ah, o porão que agora mostra claramente que lembranças chinfrins ainda não se descartam. Guardemo-as por dó. Descartar seria amainar a vida com novos disparates.
Aquele velho porão de porta torta, emperrada de sentimentos. Aqui. Aí.
O disco da elizeth cardoso e do jacob do bandolim. Aquele da capa de chão de tacos que cheira o mesmo mofo em forma de fotografia. Ao lado de um antigo 45 rotações do Smetana. Eu gostava dos dois. Gostava do ritmo, do balanço suave das composições. Eu nem queria saber se era velharia ou clássico. Era música.
Mas nunca pude gostar, assim, explicitamente. Essas músicas não podiam sair do porão da porta estreita. Meus amigos não seriam mais meus amigos. Minha vida social ruiria. Minha capacidade cultural seria queimada em fogueira pública. Meus amigos eram roque, eram fio desemcapado da cabeleira alta.
O velho sou eu, desde muito jovem. Gostava do cinema nacional. Da música puladinha na sandalha de couro de chão batido. Do carro cansado e já desdenhado. Aspirado, nada de turbina. Cheiro do banho e não do perfume. Revista vencida, livro bolorento, mulher de corpo de 28 que não é nova nem balzaca, pinga com limão e mel. O bar do Tino com os velhos da bocha e do bolão, o centro de tradições com gaúchos pilchados e suas facas na cinta. Costela, uma boa ripa. Eu ia pela comida; a tradição era a gastronômica. O corte de cabelo do Albino com tesoura, navalha afiada no couro e álcool para doer o escalpo depois. E aquela desgraceira nunca ficava bem aparada e aprendi a resignação de nunca ter um corte de cabelo que gostasse ou que me desse uma identidade e marca registrada própria.
Aliás Albino Junior, filho da puta cachaceiro, me aterrorizava ainda moleque quando passava um pente com algodão entremealhado nos dentes finos de baquelite na minha cabeleira. Era uma forma de retirar qualquer fio de cabelo cortado que não caíra na hora do secador de cabelos. Fazia sentido e assim não caíam na roupa clara, um capricho pouco visto em outros barbeiros. Mas Albino Jr, filho da puta, a cada passada de pente mostrava a cabeleira negra solta do alvo algodão e, falacioso, “olha essa queda de cabelo aqui você vai ser um calvo fudido quando fizer 22 anos nenhuma mulher gosta de jovem com essas entradonas que parecem a baía de todos os santos são uns fudidos para elas tudo jovem brocha e careca”.
Minha vida tornou-se complexa, mais do que deveria. Seguindo por uma rota alternativa e muito estranha. Meus amigos ficaram pelo caminho, um a um, colocando raízes em lugares seguros.
Como se não quisessem mais saber de novas experimentações, não sei.
Ainda os tenho em minhas redes sociais. O tempo passa e nossa distância temporal alonga-se sem mais chances de regresso. Sou um traidor no fio mais nojento da palavra. Resmungo toda vez que escrevem. Colocam fotos. Músicas, memes, joguinhos idiotas e testes ridículos. Eu entendo. E me envergonho do crápula que me tornei.
O texto vem com erro de gramática. A foto continua sem foco ou com horizonte torto. Eles são felizes, simples. Eles são felizes mesmo? Parecem sorrir com um olhar de súplica, cheiram à choro contido. Eu fui longe demais? Teria como voltar?
E longe demais; mais de doze mil milhas nos separam. Estou a quatro horas de diferença, isso é mais do que simples meridianos.
O velho porão ficou menor do que eu lembrava.
A rua estreitou.
Minha vida faliu.
Meus amigos ruíram no barranco.
Foram carregados pela enchente caudalosa.
Albino morreu tem uns 6 meses e descobri semana passada.
Albino Jr. costumava fechar a barbearia uma única semana ao ano, nas redondezas de junho. Festas Juninas, na melhor predileção. Nem dia-de-ano ele deixava de trabalhar “Os coronéis querem cabelo no pente de 120 dentes, besuntado na graxa brilhenta, bigode bem aparado um lado de cada vez com tesoura afiada para não arrepiar”.
Era a data certa para viajar até o vizinho vilarejo natal no sertão agreste, inexistente no mapa e sem vento. Tal e qual aqui, sem vento, sem variação de temperatura atmosférica acolá. A percepção de calor e frio variava de acordo com o ritmo circadiano. “Essa currutela não tem nome e não existe”, replicava Joaquim, o seu sócio antipático.
“Existe-a, visite-a”, devolvia Albino Jr. “A entrada na vereda depois de Mombaça não achei”. “É logo depois de Fazenda Cafundó” “Ali já é Cajazeira dos Pedro” “Eu mesmo mostro”.
Albino levou finalmente Joaquim para os eventos junínicos e seguiram adiante na única bifurcação da rodovia, logo atrás das pitombeira dos pajeús. Talvez só ele conhecia o percurso via 404 até a entrada da vila minúscula, sua vila, sua vila natal, com gente pacata e afável.
Chegarem-o.
Joaquim incrédulo com o que via.
"Veja o asfalto, ele nunca vai rachar, sempre viverá na mesma dilatação em que foi depositado". “Como asfaltaram aqui!?” “O capitão é primo do governador”. “Não dá pra viver num lugar que não notamos o quente ou o frio”. “E o azul do céu que sempre foi azul, você já não se acostumou? E nem por isso!”
***
Estacionaram a vemaguéte na frente do bar da Tia Eduvirgem. Viagem longa e sacolejada mexeu com a pressão urinária. Os dois foram juntos à casinha. Albino notava um som quase rítmico que saía da caixa de descarga. Era o gotejo, mas tinha um ruído adicional indefinido. Depois que puxava o cordão o batuque principava parar. O turbilhão d’água a descer em queda-lenta era animalesco, soava como um cassaco gordinho sarrabuiando pelos encanamentos.
Mas tão logo a tempestade findava, o pinga-pingar melódico e bem rítmico retomava a toada dentro da caixa plástica acústica. O compasso da melodia variava de acordo com a força da puxada da cordinha de varal amarrada no gatilho infinitamente remendado com uma bola cinzenta de durepoxi. Cadenciava com o pézinho num canto do banheiro e tentava um solo gutural baixinho de hum-hum-hums.
“Albino a água da descarga não arrodieia; ela desce sem movimentação!” “E quem quer ver redemônho, criatura?” “A Preguiça! A preguiça dessa água! Nem pressa tem!”
E não tinha mesmo. A pressão barométrica ali era menor que o mais alto dos mais distantes picos montanhosos terrestres, o que era realmente um fator malemolente para tudo.
***
No bar da Tia Eduvirgem a especialidade culinária era um Tucunaré fritado na banha, imerso até pururucar as escamas. Um bolo manzape com mungunzá e café preto forte para limpar as graxas todas.
Albino Jr. achava que todo Tucunaré no momento da saída da água, numa pescaria com a bocarra de fora, estava contando uma piada para o pescador; sempre o peixe estava sorrindo. Alguns ficavam de cara fechada porque não entediam a piada. A comicidade variava de acordo com a região geográfica.
Apenas Tucunarés faziam piadas, nenhum outro mais. O peixe contava a piada. Olhava a platéia com o ocelo caudal. Aliás o Tucunaré usava seu terceiro olho em uma esquete de standup comedy: “terceiro olho de humano é todo charmoso, pintinha pineal metafísica de chakra na testa; O meu é um desalinho mal desenhado na bunda mesmo”
Albino Junior, emérito surrupião alvino, gostava muito das tecnologias. Imprimia newsletters em uma impressorinha matricial 9-pinos de fita cansada e quase sem tinta. “Que raios são nilsléteres?” “Periódicos literários, prosa boa, telemensagens, vai lendo aí”.
Imprimia e distribuía para a clientela que esperavam aparas no Salão Javol.
Albino era um bom escritor e teórico. Era polemicista, era demagogo.
Em artigo publicado na edição de Setembro de 1986 do periódico científico digital CC&P foi bem elucidativo ao enumerar as estratégias do novo fenómeno das newsletters legíveis em bom português em duas belíssimas categorias:
Cartas virtuais (as newsletters) com textos muito curtos, que não entediem o leitor, ávido por folhear várias outras cartas, adepto da leitura frenética, acólito do culto à barra de rolagem, compulsivo do rolar da minúscula tela do telefone, com um suave abano de dedos, investigando tópicos e os tomando como síntese da informação completa. Entregue-os o que melhor apetece à suas pressas: a velocidade da absorção visual é a síncope do escorreito saber.
Cartas virtuais (as newsletters) com textos enormes, épicos em que, após um minuto de cronómetro analógico, não se consegue chegar ao final do prólogo. A tela já encontra-se sebenta de tanto o dedo esfregar sul-norte. Tal grupo de leitores não são adeptos da compreensão absoluta, mas sim fragmentada, assim mesmo não pulando, lendo o texto por completo, sintetizando palavras, sorvendo conceitos, elucidando abnegações e disparidades, em um lúgubre exercício de desconcetração até o exato ponto em que as palavras lidas tanto-fez-como-tanto-faz e ele se joga num devaneio ébrio absorto. Ás vezes se cansam — é verdade — e saltam para um joguinho de fazendinha-feliz qualquer. Alguns clicam no “Continue lendo” e varam de onde pararam, para cima ou para baixo, não importa a ordem.
The reluctance to put away childish things may be a requirement of genius.
Rebecca Pepper Sinkler