0014/ Já não tenho tempo para lidar com mediocridades artificiais.
Velho | Sobrado | Churrasco | Sapecada de pinhão
Com a prática é fácil aceitar a representação da realidade em cada época. A maioria não reivindicava cores quando o cinzento dos aparelhos de TV imperava; estavam maravilhados demais com o que tinham, ou não julgavam possível um arco-íris eletrônico e dinâmico.
Quando as caixas de metal teimam em capturar as paisagens, embrulham em suas estações e revendem a nós, seus antigos e novos donos, acabamos por nos iludir ao considerar a atual sofisticação de resolução visual como a própria realidade fielmente transportada.
Ao menos esta convicção fará com que se interrompa este apreensivo e deixem intacto um bom pedaço de mundo para os que colhem a realidade com retinas de carne.
As telas cresceram, além. Os caixotes afinalaram, delgaram, são quadros em paredes, quiçá molduras discretas.
As telas diminuíram, também. Dos caixotes vieram frações diminutas de metais e vidros que cabem em bolsos e bolsas.
Deixem que levem flores artificiais achando que levam genuínas camélias do campo, ademais cada flor real colhida do nosso jardim secreto é um aparelho móvel esquecido no fundo das calças, um dispositivo desligado a mais no mundo, um par de olhos que se levanta teimosamente do foco quase vertical ao horizonte quase infinito.
A velhice nunca é um processo individual. Quando se envelhece, o mundo o acompanha, e finalmente o sujeito se dá conta do caráter cíclico da sociedade.
Quando se é jovem tem-se a impressão de que a sua novidade é novidade para todos, e por ser novidade se torna um bem precioso que vale a pena de carregar como estandarte dos tempos, mas quando se chega à idade em que os próprios filhos ou os filhos de amigos ou da parentalha revolvem o entulho e erguem um novo estandarte de remendos usados, percebemos enfim os antes imperceptíveis remendos de nosso desbotado pavilhão.
O velho não se surpreende com nada, nem mesmo com os últimos traquejos tecnológicos de inteligência portátil. Neste caso por mais ignorante que seja, reconheceu sua previsão anterior sobre a previsível evolução técnica que transbordaria por ali; os geradores de textos, inteligentes, os geradores de qualquer imagem que se pede.
Predileções tão longe e inverossímeis de uma infância que já derrubaram queixo até o chão e não há como descer mais, por isso o maxilar tende a subir novamente e é por isso que por mais bem-feita que seja a imagem gerada artificialmente sabe-se lá que é um embuste artificializado sem alma alguma.
A única possibilidade para o retorno do deslumbramento incide ironicamente na decadência física, mostrando um mundo estranho à sua rotina de adulto de plenas capacidades e ainda assim não há como se maravilhar se o velho tiver boa memória, pois esta irá avisá-lo que enfrentou a mesma seqüência tediosa na tenra infância porém em sentido inverso que terá por final o desconhecido tão conhecido da terra revirada, e é por isso que a maioria dos velhos não é feliz.
O mundo do velho deixou de existir e ele se sente exilado em terra estrangeira sem anistia que o perdoe; sua dispnéia constante varreu o passeio agradável pelo larga avenida, sua miopia ofuscou as brilhantes luzes das festas de adolescente, o Alzheimer censurou a canção favorita de sua rádio mental, sua face não se inturgesce de suor da amada, mas antes encaixota rugas ressecadas pelo vento cada vez mais quente.
Alguns ainda se regozijam secretamente – como não poderia deixar de ser, afim de não assustar os jovens com horrores antecipados – em pensar que despirão sua vulnerável manta de memórias e vestirão um casaco de terra e madeira, esse sim impossível de ser desfiado, guardião de lembranças eternas e monótonas, frias e silenciosas.
Ao anoitecer sentaram-se em bancos sem encosto (pranchas de madeira em cima de pedras e tijolos empilhados) ao longo duma grande mesa feita de várias mesinhas emendadas e a cuja cabeceira estavam sentados os noivos, tendo à direita os pais da moça e à esquerda o padre. Em cima da mesa viam-se pratos e travessas cheios de pedaços de galinha assada, carne de porco com rodelas de limão, batatas doces, pinhões e aipim.
No fundo do quintal preparava-se o churrasco: dezenas de espetos fincados em bons nacos de carne estavam colocados sobre um longo valo raso, no fundo do qual luziam braseiros; a graxa derretida caía nas brasas, com um chiado, e uma fumaça cheirosa subia no ar, enquanto duas pretas de vez em quando mergulhavam ramos de pessegueiro dentro dum balde com salmoura e depois aspergiam os churrascos, trazendo os que ficavam prontos para a mesa, onde eram disputados aos gritos.
Os homens usavam suas próprias facas, que tiravam da cintura ou das botas, e com elas cortavam o assado, muitas vezes respingando o rosto com o sumo sangrento da carne. Nas barbas negras de alguns deles a farinha branquejava como geada sobre campo de macegas recém-queimado.
O dono da casa dirigia o jantar, gritava para os churrasqueadores, recomendando: “Um bem assado!” ou “Que venha uma boa costela!” ou ainda: “Um gordo aqui pró Chico Pinto!” No princípio da festa notara-se um silêncio um pouco constrangido. Mal, porém, o vinho começou a encher os copos e subir à cabeça dos convivas, eles se puseram a falar mais alto, a rir, a contar histórias, entusiasmados. As mulheres, mais quietas, limitavam-se a sorrir, de cabeça meio baixa.
O terreiro estava iluminado por muitas lamparinas de azeite e sebo dentro de guampas postas em cima da mesa ou presas nos galhos das laranjeiras e pessegueiros. Rodrigo mastigava o seu churrasco com gosto, bebia o seu vinho estralando a língua. Sentia aos poucos um calor bom a poderar-se-lhe do corpo e ao mesmo tempo ficava um pouco inquieto, pensando no que poderia acontecer se ele se embriagasse e “perdesse a tramontana”.
O gaiteiro começou a tocar e os primeiros acordes do instrumento foram abafados pela gritaria de aplauso. Depois as vozes silenciaram um pouco e o homem – mulato de cara larga picada de bexigas – começou a tocar uma tirana. Estava sentado numa cadeira, no meio do terreiro, o chapéu quebrado na frente, o barbicacho quase a entrar-lhe na boca; tocava de olhos fechados, as sobrancelhas erguidas, e segurava a gaita com frenética paixão, como se estivesse abraçando uma mulher.
Rodrigo meteu na boca um naco de carne gorda, triturou-o nos dentes fortes e pensou ainda: Minha marca não sai mais. Nunca mais. Mastigou bem a carne e depois ajudou-a a descer goela abaixo com um gole de vinho tinto. Afrouxou o nó do lenço. “Está quente, amigo” – murmurou, dirigindo-se ao homem que tinha a seu lado.
O outro não ouviu e continuou a comer, de cabeça muito baixa, como um porco com o focinho metido no cocho. Os sons rasgados e chorosos da gaita enchiam o ar. Um ventinho morno bulia com as folhas, fazia oscilar a chama das lamparinas. Homens iam e vinham trazendo churrascos ou levando espetos.
A vida era boa – pensava, enfim, Rodrigo.
O Sobrado I – Erico Veríssimo; p.292
Esse trecho do épico romance ‘O Tempo e o Vento’ tem um valor familiar muito grande para mim. Nada de saudosismo ou saudades de um passado qualquer, é apenas uma descrição de algo que mo era rotineiro e hoje faz falta.
Minha familia sempre se reuniu desse jeito meio largado, comida, fandango, trago, carne. As fotos abaixo são do nosso último encontro, quando estive no Brasil ainda mês passado. Legendas pelo Veríssimo que é para isso que pagamos bons legendadores:
Teve a sapecada de pinhão, que é a semente da Araucária. A sapecada precisa de 3 ingredientes: pinhão, sapé (os galhos do pinheiro; conhecidos como grimpa) e uma binga (isqueiro em pt-br).
A receita é bem simples: faça uma pilha de sapé de um meio metro de altura, derrame os pinhões por cima e faísque fogo na grimpa. Como os galhos são bem combustíveis, a fogueira parece uma filial do inferno, a impressão é que o fogo descontrolou, o medo dos pinhões carbonizados é real mas no final sobram cinzas, pinhões perfeitamente assados e dedos pretos.