0015/ Sem muitas cerejas na bacia.
Meykhana | pacu | Rilke | Chatô | personagem | Dylan | Mario | Dylan
Ouça o caos sonoro: meykhana, um estilo único do começo do século passado, direto do Azerbaijão. Baseada na trova cantada por homens em casamentos, mas na voz de uma mulher o que por si só torna essa lista um sortilégio.
Não tenho como precisar a informação, mas desconfio que o Brasil deu uma desandada forte na geopolítica financeira no momento em que a indústria resolveu amassar e compactar os rolos de papel higiênico.
Ao desamassar o rolo, ele fica quadrado. Não roda suave no suporte, desenrola no tranco do solavanco. Isso deixa a vida mais amarga para o enfezadinho.
Vocês engoliram essa atualizada no pacu com farinha. Um vivente já tinha reclamado disso em 2014.
Rilke disse: “Se você acredita que é capaz de viver sem escrever, não escreva.”
Gosto da propaganda, da música, da animação. 2010, beibe.
Uma vez li Chateaubriand – que enganara não só eu, pelo simples fato de não se situar emocionalmente na citação. Dizia o Chatô, inspirado explicitamente em René:
Amarem-o cansava-o — on le fatigait en l’aimant.
E assim, perigosamente, podemos morrer se apenas amarmos.
Quando estudei comunicação na universidade, uma coleguinha que carregava mais bonitezas do que juízos, apresentou um trabalho sobre Tchétolbráian, assim falado como se lê. Eu achei bonitinho a puchada anglofônica na francofonia nominal.
And all the people of the lulled and dumbfound town are sleeping now.
Hush, the babies are sleeping, the farmers, the fishers, the tradesmen and pensioners, cobbler, schoolteacher, postman and publican, the undertaker and the fancy woman, drunkard, dressmaker, preacher, policeman, the webfoot cocklewomen and the tidy wives. Young girls lie bedded soft or glide in their dreams, with rings and trousseaux, bridesmaided by glow-worms down the aisles of the organplaying wood.
You can hear the dew falling, and the hushed town breathing.
Only your eyes are unclosed to see the black and folded town fast, and slow, asleep.
O trecho é do Under Milk Wood de 1954, uma narração onde Dylan Thomas convida o público para escutar os sonhos e desejos dos habitantes da pequena cidade galesa imaginária chamada Llareggub (“Bugger All”, dos contra)
Outra propaganda, ralfinho? Sim, outra propaganda. Vivo disso, é mais forte do que eu.
“You can hear the dew falling” lá na roça de onde venho a tradução seria: “Está tudo tão quieto que escuto a grama crescer.”
O personagem é metade do que já foi, e que não era lá muita coisa. O personagem imagina um homem minúsculo com um coração do tamanho de uma semente de pau-brasil e dois rins de feijão. Esse homenzinho veste um terno branco com um lenço vermelho no bolso. O personagem atribui sua miséria a ter nascido num dia primo em um mês ímpar.
O personagem tem umas duas ou três músicas que repete obsessivamente na memória, e mesmo assim, só alguns trechos. Ele também tem pensamentos paranóides mas não assume nem fodendo. Está na fina linha entre f:1.4 e f:2.8.
O personagem anda se misturando com os carinhas da Kombi preta, aquela com um grafite de uma borboleta de corpo feminino e asas azuladas.
Esse personagem acorda pela manhã já pensando na noite, na hora em que vai voltar pra casa e dormir. O personagem pensa que sabe o que está acontecendo, ou melhor, tem certeza. Os outros nem imaginam.
O personagem pesca frases ou palavras em um diálogo e transforma a resposta em um cantarolar tristonho de um pedaço do cancioneiro conhecido. Sabe muita música picada.
O Personagem, enfim, conheceu uns tipinhos intelectuais em um sarau poético. Pensou que já era hora de começar a se apaixonar por atrizes do cinema ou por cantoras folk.
O valioso tempo dos maduros.
(…)
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam
poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,
cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir
assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário-geral do coral.
‘As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos’.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,
minha alma tem pressa…
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana,
muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com
triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade.
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade.
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!
– Mário de Andrade
(1893-1945)