Baladinha direta da Estônia. A dupla gera um barulho folclórico com o som de uma talharpa, mesclando um pouco de soul e improvisações. É a pura síntese da música tema para esta newsletter, vai por mim:
Manual de auto-defesa para o intelectual hodierno
"Mais do que pensar, o importante é ter expressão franca de pensador.”
— R. Spegel, durante o discurso de inauguração da turma 4 do CQ™ em 1977.
Muitos leitores escrevem em tom de angústia e nervosismo para a nossa redação (com sede própria). Gente simples, honesta e de boa vontade, com uma dúvida que os tornam inverossímeis: como deve o indivíduo culto e de boa índole se proteger da escumalha que tenta reduzir as dimensões do reino de seu ego e usurpar o seu trono em reuniões sociais, pondo à prova a ciência desses vates a cada minuto?
Com isso em mente, editemos para nossos associados que nada pagam (e tudo lêem), uma espécie de “manual de auto-defesa para o intelectual hodierno” em um pequeno fascículo de bolso. Aqui, o interessado poderá encontrar alguns artifícios que o ajudarão a demarcar o seu território e a se destacar em qualquer sarau mais hostil.
Para os que sobem ao teleférico já em movimento, uma breve explicação: a nossa redação (com sede própria) aqui reproduz resumidamente um dos tópicos de maior sucesso na série Coaching Quântico™, que traz dicas e orientações de conduta para o intelectual/entusiasta moderno. É um pequeno tratado, dividido em 17 minúsculos tomos, que têm como árdua tarefa a doutrinação daqueles que tencionam aventurar-se por esta infausta esfera que é o mundo “intelecto-cultural”.
(Vide o adendo “Fraseário Precioso” – somente para assinantes Gold IV)
Parte do discurso inflamado do nosso Coach™ – citando Henry James – ante à fundação do curso Coaching Quântico™:
“We work in the dark – we do what we can – we give what we have. Our doubt is our passion and our passion is our task. The rest is the madness of art.”
E terminando com o singelo: “Quem de si faz alarde, cedo o rabo lhe arde.”
Enfim, damos início ao excepcional guia intelectualista. Cabe explicitar que o nosso curso ja formou 39 notáveis intelectuais hodiernos, com o estrondoso sucesso na nossa tarimbada audiência:
01
Sempre discorde em relação à apreciação da obra consagrada de qualquer autor, isto é, mostre sempre preferência por outra obra (menores e obscuras), utilizando-se de adjetivos e expressões contumazes nesse tipo de crítica.
Exemplo A:
— “Laranja Mecânica” é, com certeza, sua obra-prima...
— Não acho, realmente. Prefiro “Dr. Strangelove”, um filme bem mais orgânico...
Exemplo B:
— Ah, “O Vermelho e o Negro”! Stendhal não poderia ter sido mais feliz!
— Já leu “Armance”? É uma obra muito mais visceral, de uma força dramática quase cruel...
02
Emita sempre opiniões definitivas, ou seja, transforme suas impressões em conceitos insofismáveis. Não dê qualquer motivo formal, a não ser sua subjetividade. Exagere, desmunheque se for preciso.
Exemplo A:
— O “OK Computer” é o álbum da década de noventa! Um marco na história da música moderna. É tudo na vida de uma pessoa!
Exemplo B:
— Glauber é Glauber!
03
Elogie figuras controversas ou idéias polêmicas, no intuito de mostrar que você tem uma personalidade forte e é um livre-pensador sem preconceitos (evite Hitler, tornou-se a musa dos extremismos). O lance é causar celeuma.
Exemplo A:
— Carlos, o Chacal foi o maior gênio do século XX: uma figura a servir de exemplo.
Exemplo B:
— A teoria de Malthus é esplêndida e seus conceitos, admiráveis.
04
Da mesma forma, diminua elegantemente a importância de artífices consagrados.
Exemplo:
— Borges é repetitivo, seus textos são maçantes e de um estilo insuportavelmente barroco.
05
Cultive hábitos pouco ortodoxos e tente tornar-se conhecido através deles, transformando-os em uma “marca pessoal”. Ademais, eleja preferências obscuras, descartando-as ao primeiro sinal de conhecimento por parte das “massas”.
Exemplo A:
— Na segunda-feira gosto de ir à praia jogar paciência, acompanhado de uma garrafa de cidra Cereser.. É coisa minha mesmo...
Exemplo B:
— Tenho todos os discos da banda islandesa “Flying Pimp”...
— Sério? Eu amo essa banda também!
— Bem, na realidade não gosto muito, acho simplório. Esses discos são de uma fase minha que prefiro esquecer...
06
Nesse espírito, seja nebuloso e reticente em relação às fontes do seu acervo. Jamais revele informações que possam popularizar aquele “material exclusivo”.
Exemplo:
— Cara, onde você conseguiu esse livro do Chomsky?
— Ah, ganhei de uma amiga aí, mas nem curto muito, e tal...
07
Mesmo que não conheça em absoluto o assunto tratado, insira filigranas pouco importantes, todavia curiosas, extraídas de resenhas, matérias de revista, programas de televisão, etc. Exercite a memória.
Exemplo A:
— ... Isso fala mais ao pensamento de Nietzsche.
— Sim, sim. Pobre-diabo, ficou louco ao ver um cavalo sendo morto em Turim, e assim permaneceu até o fim da vida...
Exemplo B:
— ... e esse foi o real motivo geopolítico da detonação das bombas em Hiroshima e Nagasaki.
— De fato. Tudo isso culmina com o Enola Gay (que era o nome do avião) despejando o Little Boy (nome dado à bomba) sobre as cabeças daqueles infelizes...
08
Nunca, jamais, admita um erro. Sempre que isso acontecer e houver algum cretino para corrigí-lo, cite uma referência que não poderá ser checada no momento e afaste a responsabilidade do erro de si. É famoso o expediente do “Há controvérsias...”
Exemplo:
— Com o início da guerra em 1935...
— Em 1940, você quer dizer.
— Não, 1935 mesmo. Essa é a data considerada pelo historiador Eric Hobsbawm como o início do período beligerante e...
09
Adote uma atitude “sex sucks”. Demonstre dar pouco valor ao amor carnal e execre a pornografia. Se tiver de tomar alguma posição, tenda sempre a uma neutralidade de gênero fluido e velado, atitude considerada cool nos meios acadêmicos. Vale associar a essa imagem um ar deprimido, constituindo a modalidade “sentinela triste”, igualmente apreciada. Cite, sempre que possível, Oscar Wilde.
10
Nunca se refira aos seus ídolos pelos dois nomes, o que torna a citação algo forçada. Prefira uma suposta intimidade e aproximação geradas pelo uso do apelido ou apenas um dos nomes artísticos (amiúde o primeiro, no caso de personalidades nacionais, e o segundo para o pessoal de fora). Assim temos: o Chico, o Caetano, o Raul, o Glauber e a Gal; e o Warhol, o Whitman, o Kipling, etc.
Exemplo:
— A Clarice (a Lispector) mostra profundas influências do Joyce (o James)
11
Sempre que possível, cite o nome das obras em sua língua originalᐜ. Você não precisa dominar o idioma, apenas pergunte a alguém que o faça e treine bastante em casa.
ᐜ É bom saber: L’Etranger (O Estrangeiro), Der Prozess (O Processo), Prestupléniye i nakazániye [fala-se: prʲɪstʊˈplʲenʲɪje ɪ nəkɐˈzanʲɪje] (Crime e Castigo), Picture of Dorian Gray (O Retrato de Doriane Cinzentada)
12
Seja pós-moderno. Comece por preferir coisas atuais aos clássicos embolorados. Sempre que possível escolha as versões novas ou revisitadas, também chamadas releituras (decorar esse termo), de obras antigas.
Exemplo:
— É claro que prefiro a versão minimalista de Hamlet do Peter Brook! A do Shakespeare é deveras naïve...
13
O bom intelectual está sempre à frente. Tudo seu é mais e melhor. Assim, opta sempre por movimentos e expressões artísticas precedidos por “neo-” e “pós-”. Não importa o quão recente seja o ‘oba-oba’, o simples uso dessa técnica propicia sua superação imediata e a colocação no plano do passado antiqüíssimo. Mais: use termos superlativos antes do nome, o que tende a aumentar o hermetismo e, de quebra, melhorar a sonoridade.
Exemplo A:
— ...superior a De Kooning?
— Sim, falo da descoberta do neo-expressionismo e a transvanguarda na década de 80.
Exemplo B:
— Não sei se considero isso pós-moderno...
— O quê?! O hiper-realismo desses filmes suscita ambivalências ultra-passionais.
14
Você não tem que necessariamente gostar das coisas que idolatra publicamente. Como já foi explanado nos tópicos iniciais, suas preferências devem ser guiadas por fatores como obscuridade, capacidade de gerar polêmica, efeito dramático, etc. Não havendo, igualmente, necessidade de entender as obras por completo...Para ser franco, você não precisa nem conhecer essas coisas!
Exemplo A:
— “Finnegan’s wake” é meu livro de cabeceira...
Exemplo B:
— Gostas de música atonal?
— Se gosto? Ouço Stockhausen diariamente enquanto escrevo minhas resenhas para o jornal Lucta...
15
Compareça aos seletos círculos culturais. Mas não faça amizades íntimas (nunca empreste livros), vá apenas para sondar, sacar o que o “pessoal” anda lendo e fazendo. Mantenha sempre o ar circunspecto e o laconismo dos grandes gênios. Compareça também (mesmo sem ser convidado) às rodas de artistas. Mantenha a quietude até ser solicitada, por educação, sua opinião a respeito do trabalho do grupo. Nesse momento, não hesite em ser cruel e pedante nas críticas. Continue firmemente até ser expulso ou vaiado.
16
Tenha sempre à manga empreendimentos fictícios com os quais esteja supostamente envolvido. Use-os quando não estiver fazendo nada de especial (o que não é raro), para mostrar-se sempre na ativa. Apresente-se comumente com o cenho franzido, como se tivesse alguma preocupação insuportável; saque sempre seu bloquinho de notas e escreva qualquer coisa nele.
Exemplo A:
— Está ocupado no momento?
— Nada demais, estou trabalhando de freelaᔿ pra uma editora holandesa que quer publicar uma biografia sobre Eckhout.
Exemplo B:
— Que está escrevendo aí?
— Nada, não...coisas minhas (guardando o bloquinho). Uma idéia que tive pra colocar no meu ensaio sobre os erros conceituais de Leibniz...
ᔿ “freela” é corruptela do anglicismo “freelancer”
17
Durante sessões de cinema, teatro ou recitais, mantenha atenção constante, ar meditativo e posição corporal adequada. Nunca ria de situações constrangedoras (principalmente do teatro). Guarde o riso para as piadas mais sofisticadas, quando a maioria dos expectadores se mantém calada. Não esqueça do cenho franzido!
Escolha uma dessas posições ao sentar:
Posição A: Ângulo agudo entre o plano do corpo e o plano das pernas (sinal de interesse), polegar da mão direita sob o mento, indicador sobre os lábios.A mão esquerda repousa sobre coxa esquerda.
Posição B: Pernas cruzadas. A cabeça repousa sobre os dedos da mão direita em L (indicador sobre a lateral da face direita e polegar sob a maxila inferior). Braço esquerdo sobre descanso da cadeira.
Appendix I
As redes sociais modernas
Em aplicativos de redes sociais modernas (amizades, namoricos e fornicação), seu ego será moldado de acordo com os gostos e normas pessoais. A forma de expressão mais segura e redomática é a da imposição pelo desconhecido.
Descritivos como “Quem sou eu:” deve, por obrigação, suprimir qualquer informação relevante sobre você. Jogue com aspectos importantes em campos delicados: “Filhos:” vários. (Varie: ‘alguns’, ‘não tenho idéia’). Ignore “Idioma:”. Seja descolado na “Religião:” Ayyavazhi, Ahmadiyya, reconstrucionismo politeístico. “Humor:”, seco e rude. “Visão politica:” pede extremismo mas sem declaração de que lado esteja.
Atenção aos campos chamados de toda à prova: “Livros:” e “Cinema:”. Escreva títulos no idioma original sempre que puder, conforme o tomo “11” deste manual.
Coringas neutros para filmes de cinema: Sommaren med Monika, Ansiktet, Persona, Sason I em spegel, Satyricon, Saló, Pierrot le Fou, Tristana, L’age d’or, Barravento, Habla con ella, Hiroshima Mon Amour, Citzen Kane; Aurora; Deus e o Diabo na Terra do Sol; Amarcord; Acossado; Vidas Secas; Monella; Volver; Koyanisqatsy.
Coringas neutros para livros: Demian (Hesse); À la recherche du temps perdu (Coletânia de Proust); Преступление и наказание (Crime e Castigo); Братья Карамазовы (Os Irmaos Karamazov), Идиот (O Idiota) todos estes de Dostoiévski; Le Rouge et le Noir (Stendhal); Marcas da alma (Gafni); Tempos interessantes (Hobsbawn); O segredo das colinas eternas (Cahil); Três russos e três ingleses (Verne); A Ideologia Alemã (Marx & Engels); O Desespero Humano (Kierkegaard); Memorial de Aires (Assis); Miséria da Filosofia (Marx); Matafísica do Amor (Schopenhauer); Noite na Taverna (Azevedo); Primo Basílio (Queiros); Sonetos (Bocage); Tartufo (Molière); A Utopia (More).
O conteúdo social diário precisa ser ácido, um convite à reflexão. Transforme sua área de postagens em um coiquinho soalheiro. Teça comentários incovenientes, esparsos, dúbios. Provoque, xingue se preciso. Poste fotos, imagens, pictogramas e rabiscos aleatórios, às vezes a temática kawaii japonesa; às vezes a preciosidade nefasta emocore finlandesa com trejeitos sombrios.
Siga incisivo em suas respostas, modele a sua imagem tal e qual uma personalidade geniosa, pedante, um circunspeto das palavras rasas. Seja o charlatão inculcador de drogas verbais, elixires psicológicos, o aviltador dos segredos de muito préstimo.
Faça sua rede de amizades pensar duas vezes em travar uma discussão; os que estão ao seu redor tenham a real consciência de que um silogismo será uma luta literária gráfica inconteste. Desfaça mais amizades, em um dado momento, seguindo a taxa de 3:47 (três desamigamentos para cada 47 amigos consolidados). Outrora, reconstrua algumas pontes, alguns laços. Repita o ciclo; inclusive a recomendação é repetir a surubada acima com os mesmos amigos desamigados, criando uma espiral de estress em todas as relações.
Appendix II
Material público para uso livre
Apresentamos aqui mais uma mãozinha para os cultivados leitores destas esquivas linhas. São títulos que podem ser utilizados indiscriminadamente, para um sem-número de resenhas, críticas, ensaios, artigos, notas, diatribes, apologias e correlatos, em cadernos culturais, revistas alternativas, suplementos especiais et cetera:
“Vestígios do real”
“A inovação do improviso”
“O canibalismo da consagração”
“Relações Vacilantes”
“Elogio da pureza”
“A geografia do sublime”
“A outra luz da realidade”
“Registros do efêmero”
“A arte na crise”
“Além da forma”
“A fagocitação efêmera”
“O sincronismo dúbio”
“Predator autófago”
“Síncope elitista”
“Profícuo mentalizador”
“Vanguardista”
“A celebração da…”
“Dicotomia de valores”
“Vã conceitualista”
Outrossim, e mais à mão, o escritor mais prático pode valer-se da combinação aleatória da pequena tabela que se segue:
ENTRE A ░░░░░░ E O ▒▒▒▒▒▒
Lógica ╳ Clássico ╳ Insueto Cruz ╳ Paradoxo ╳ Ripário Invenção ╳ Lúgubre ╳ Eufemismo Verdade ╳ Moderno ╳ Lucubração Farsa ╳ Celeuma ╳ Barrunto Repetição ╳ Mesura ╳ Bartedouro Espada ╳ Vênia ╳ Aferrado Morte ╳ Zumbaia ╳ Marroada Sedução ╳ Sassarico ╳ Desconchavo Loucura ╳ Desusado ╳ Inefável
Vulnerant Omnes, Ultima Necat
Rio perpétuo e surdo, as serras esboroas,
Serras e almas, ó Tempo! e, em mudas cataratas,
As tuas horas vão mordendo, aluindo, à toa...
Todas ferem, passando: e a derradeira mata.
Mas a vida é um favor! De crepe, ou de ouro e prata,
Da injúria ou do perdão, do opróbrio ou da coroa,
Todas as horas, para o martírio, são gratas!
Todas, para a esperança e para a fé, são boas!
Primeira, que, em meu ninho, os primeiros arrulhos
Me deste, e a minha Mãe deste um grito e um orgulho,
Bendita! E todas vós, benditas, na ânsia triste
Ou no clamor triunfal, que todas me feristes!
E bendita, que sobre a minha cova aberta
Pairas, última, ó tu que matas e libertas!
— Olavo Bilac