Eu li a pergunta da newsletter abaixo e levei uns bons minutos para sair do lugar-comum ‘gosto de sagu, de bicicleta e de caçar faisão’. É um exercício bem complexo achar os elementos da memória que realmente dão taquicardia. O título de Shonagon para a lista é ‘Things That Make One’s Heart Beat Faster’. A tradução da expressão seria ‘coisas fazem o coração de alguém bater forte’, Tem uma diferença entre ‘heart beat faster’ ou ‘warm the heart’ ou ‘warms the cockles of our heart’ mas o meio é a mensagem no final das contas;
Meu coração bate mais rápido quando a adrenalina come na bicuda. São contrastes de situações boas e ocasiões ruins. Todavia, a minha lista de momentos que fazem um ‘coração esquentar’ (sem ordem de importância, botei a cabeça no balde e as ideias pulularam) é filtrada em coisas positivas:
Nadar em riacho ou lago gelado de água cristalina;
Dirigir longas distâncias nas férias;
Presumir uma boa fotografia se formando, e:
Conseguir sacar essa foto;
Aumentar o volume quando uma música boa toca; o aparelho é potente e responde tal e qual Miami Bass o Pancadão dos Bailes™;
Cheiro de madeira queimando em uma fogueira, mas à noite. (Tem alguns fatores que fazem uma fogueira noturna exalar uma essência melhorada mas preciso criar essa teoria);
O mormaço cozinhando alguma cidade entre a faixa litorânea e a serra do mar, o queimar da pele, o aroma botânico abafado enquanto a relva respira;
As crianças brincando embaixo da janela do escritório enquanto trabalho;
O passaredo de estorninhos-malhados que pousa no gramado do quintal para o rotineiro pente-fino nas minhocas e insetos;
Ver o meu amigo corvo comer os amendoins que deixo para ele;
Acompanhar a germinação de sementes no meu Jardim do Caos™.
Eu diria: “Cheiro de chuva batendo na poeira quente da terra”. Igual ela mencionou, em algum lugar na lista.
Uma vez escrevi que um cheiro único que gostava era o da terra recém chovida. Foi uma descrição bem elaborada até. Um leitor da rede retrucou: ‘Cheiro bom é o de mulher que acabou de tomar banho’. Tornei-me amargo com a nota; a incoveniência da opinião. Não são comparações compatíveis. Quem define o quê, ô filadaputa?
Até que um tempo atrás eu achei a razão do cheiro da chuva. Eu ainda gosto do cheiro de chuva. O cheiro de chuva – olha só! – tem nome: petricor.
PETRICOR (DO GREGO: ΠΕΤΡΑ ↝ PÉTRĀ ↝ PEDRA + ΙΧΩΡ ↝ ICHṒR ↝ SANGUE DOS DEUSES)
Cunhado por dois cientistas australianos, o petricor é uma mistura de óleos essenciais das plantas e fungos que evaporam com a água. E de enzimas produzidas por uma bacteria que fica no solo. E do ozônio formato por reações elétricas tempestuosas. É um cheiro complexo. Quiçá tão bom quanto um cheiro de mulher recém banhada. Por chuva. E óleos essenciais.
Sempre gostei de perfumes; agora os de embebedar o couro. Na última viagem ao Brasil parei na frasqueira de viagens gratuita (dutyfree), onde sempre escolho a minha fragrância-tema para a travessia oceânica. Cada pernada aérea é um cheiro inédito no cangote.
Pois bem, o vencedor dos papelinhos abanantes foi um perfume com nome ‘inspirado’ naquele embuste chamado Contém 1g: Replica.
Replica, da Margela. Cheiro de lareira. Em Chamonix. Fontes próximas corrigiram ‘a’ Margela; é ‘o’ [Martin] Margiela e que essa réplica não é uma cópia barata inspirada alhures. A indústria da moda sempre me engana e sinto que meus arremedos contextuais são anômalos ao público-alvo designado.
Mas vá lá, caí no golpe e comprei o frasco. O cheiro é tão fio-desemcapado fora da curva das fragrâncias-padrão que agora esse pedaço de álcool com nozes, pimentas e imbuia moída faz parte da osfresia que me ronda. Quase escrevi uma carta para a Margela externando meus obrigados mas deixa para lá ela jamais leria minha missiva de próprio punho.
Com a idade – que só damos conta que ela existe depois dos 25 – adquirem-se novos vícios deliciosos. A pantufa fofa; o conhaque aquecido na mão; o eau-de-vie delicado; o sono da tarde ensolarada de sábado; a culinária refinada; o carro esportivo que não corre como deveria; a música curada fora das dez-mais-mais do canto do seu rádio, o perfume de fino trato além do alcance das prateleiras de mercado.
E depois, quando a pátria amada não passa de um passado cada vez menos retumbante, descobrem-se outros. As banalidades nacionalescas que antes eram perpétuas e adquiridas no papel – notaram-se muito mais exóticas em confiteor sagrado. O sol que chamusca nos cinco minutos de exposição. O ronco do motor preguiçoso do moedor de caldo de cana. O pastel da Viçosa ou o pierogi do Grovski. A falta de trato no português falado que solércia.
A praia aqui ao lado entrega uma beleza agradável. Mas enregela os cambitos. Inibe a mínima vontade de destampar as vergonhas e se entregar ao sabor do mar. O sol é, mas morre tarde demais no verão. E cedo demais no inverno. Esquenta menos do que deveria; chamo de luzinha de geladeira. E o fino trato da língua portuguesa me dá um medo terrível de perceber que não posso flanar longe dela, ou pior: esquecer um idioma tão lindo e complexo. O inglês eu desisti. Não se pode almejar um G.Chaucer. É uma gramática construtiva de caráter inverso. Não flui, não segue as canaletas naturais em uma descaída natural. Igual ao mar bonito não banhável.
Evito a nóia. Aliás, a nóia tem nome: nostomania. O banzo, o chilique. Era o que eu queria. Era o que eu queria? A liberdade é linda porque é flexível. Volto quando quiser. Fico o quanto puder. Vão-se políticas e culturas, ficam os discursos ababalhados.
Eu não quero. Querer eu quero, mas não estou com essa vontade toda. Então não quero. Venha, vai ter bolo. E o resto do mundo? E a familia? Somos todos conectados. A teleinformática moderna resolve.
A gramática mudou e eu fui apenas um filtro transmeável e embaciado sem retenção de nada que poderia ser novo. Não quero perder o trato. E, sobre a fala, foi preciso esperar quase meia-vida para perceber que não consigo respirar longe dela.
A vida é cheia dessas presepadas. É incrível ter a capacidade de aprendizado e compreensão, de saber exatamente o tanto que passa e o tanto que fica. E não embrabecer mais por ronha alguma.
Li em um twitter a frase “Haz fotos ahora de lo que tenemos, porque no sabemos cuánto va a durar”.
Todo dia preciso exercer a criatividade profissional. Ossos do ofício. Existem várias formas de ser criativo, mas hoje vou ensinar a mais saborosa, que não tem adição de lactose, frutose, mitose, meiose e nem glúten:
Redução emulsificada de criativo espitiçado
Ingredientes:
Um criativo fresco e sem casca (peça inteira);
400g de elegia tristóica;
2 litros de elixir de estranheza
(substitua por pinga ou garrafada se quiser)1 conexão de internet
1 maço de erva-de-procrastinação
Modo de preparo:
Misture tudo. Reserve. Forno à 250 bola C. Ajuste o tictac para duas horas e quinze. Continue com a reserva. Quando faltar quinze minutos dessas duas horas e quinze pode deixar que a procrastinação vai espumar e o criativo pulará sozinho para dentro do forno. Sirva imediatamente antes que a ideia batume ou entre na espiral do impostor.
Descobri que tenho olho esbodegado. Não é esbugalhado; só estou dramatizando para você comprar logo o produto.
A pancada foi uma ‘ecstasia corneana não-inflamatória progressiva’ nas duas bolas dos olhos. Assim, uma das ferramentas mais importantes na minha roda fônica profissional começou a queimar óleo e fumacear. A medicina é legal (não é medicina legal) e remendaram o problema com um pedaço de vidro flexível que é preciso instalar todo dia antes de querer enxergar o mundo 20/20.
"No princípio é como esfregar um punhado de areia em seus olhos. Depois você acostuma."
Esse foi o primeiro conselho médico sobre lentes. Depois disso uma coisa que nunca deveria ser relembrada durante o dia começou a ser relembrada: o olho. Que transtorno! Usar um envólucro rígido é um saco. Comecei a ficar inimigo da luz excessiva e a me tornar quase fotofóbico.
A fotofobia é uma alergia nos pelos da retina, basicamente.
A fotografia é uma arte da escrita pela luz.
Eu gosto da fotografia. E não gosto da luz.
José Ribamar já dizia que escrever era um processo torturante e doloroso. Eu já digo que a fotografia o é.
Colocar o olho naquele buraco-de-ver da camera é um processo muito delicado. Toda vez que me aproximo do vidro do visorzinho preciso recalibrar as vistas do processo. E quando a vista anuvêia, la vão uns bons pares de segundos para se recobrar. E assim o passarinho-de-colerinha voa e eu perco a foto.
Repita esse processo toda vez que o sol bate.
Assim é a minha odisséia fotográfica.
Toda vez que você ver uma foto minha acredite: foi um processo doloroso e estranho. E pode creditar aí um monte de foto que não prestou até chegar nessa preciosidade. O bom é que eu sou teimoso. Enquanto existirem contrastes entre claros e escuros dentro dos meus glóbulos oculares, fotografarei alguma coisa ou alguém.
O ubi campi – latino, significa “oh! onde estão os campos!”
Exclamação de Virgílio para exprimir a nostalgia dos campos e da pátria.
curti os idosinhos e a moçoila franco-germânica