Leia batendo os dedinhos na mesa: La Reina Morsa, desde Chile. Daquele surto sulamericano dos anos 10, quando consideraram o país esguio o novo berço paradisíaco do pop moderno, e do Sello Cazador, a gravadora que apostou pesado nessa curadoria.
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Gosto do termo verba volante. Participa do meu repertório de esquisitices para repetir aleatoriamente quando não tenho nada na fila de pensamentos.
Vem dos latido ‘Verba volant, scripta manent’ ou em bom brasileiro ‘as palavras voam, os escritos ficam’.
(as outras esquisitices que costumo repetir são: buzina de fusca, latido – agora a linguagem do cão, assobio de macaco endemoniado, gritinho de nasgo, beatbox mal enjambrado, xingamentos em russo ou polaco e o clássico atenuante Американская фирма Transceptor Technology Приступила к производству компьютеров Персональный спутник.)
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F.D. – a vizinha esquisitinha
Do sofá escuto a voz abafada da vizinha ao lado falando ao telefone:
– Sim. Quero doar meus órgãos. Sei disso, claro que não estou morta... AINDA, porém meu namorado vai me matar em alguns instantes.
Levanto e me dirijo ao quarto de dormir, cansado do absurdo desta vida.
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F.D. – tomo I
Conheci a F.D. em 1985 nos primeiros dias da recém fundada faculdade de publicidade e propaganda da ECA. Era uma mulher exuberante; 27 anos de idade e já havia morado no Camboja, em Maputo, Comores, San Marino e Punta del Este. Nunca havia desperdiçado sua bela vida em bancos de Universidades nem escritórios e atualmente dava aulas de francês para universitários, escriturárias e outros concursados meia-crise de nível meio-médio. Foram essas classes aos novos abastados que acentelhou-lha a remota chance de se bacharelar, enfim.
Podia ser Letras francês, convenhamos. Mas não, marcou o X com uma bic velha falhenta nas comunicações traiçoeiras em troca de dinheiro. Bem o tipinho dela.
Tinha, naquela época, uma rotina pacata após muitos anos internacionais, pagas devidamente na moeda universal dos favores sexuais. Sim, rodara o mundo, mas havia tido uma freqüência sexual similar ao de qualquer prostituta de uma grande cidade litorânea, como, por exemplo, o Rio de Janeiro. Aliás, F. me lembrava algumas conhecidas cariocas: cheiro de mar, pele acobreada, cabelos loiros queimados pelo sol, roupas leves esvoaçantes que balançavam em suspensão sobre os peitos livres e claro a extensa quilometragem venérea.
F., então, tocava sua vida guiando um Escort conversível 89 completo menos couro de um amarelo pálido e triste. “Bonjour” das 8 às 20, com 3 horas de intervalo para o almoço. À noite, tinha como opções tomar um aperitivo entre os amigos desocupados do meio artístico & decadente local ou fumar um bauretinho melado na beira-mar. Ganhava o suficiente para pagar esse lazer diário, a gasolina do descapotável, o aluguel do kitinete e a alimentação macrobiótica.
F. se considerava uma mulher feliz.
« continua nas próximas cartas »
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Aeroporto, o não-lugar por excelência, onde não há geografia e nem cultura. São todos iguais. As mesmas lojas, os mesmos preços abusivos em diferentes moedas. Às 10h da manhã tem gente jantando, almoçando, bebendo. Zumbis de fuso se desentendendo com fragmentos de várias línguas
— @Priscas
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Câmera nova. Estava até que bem com a outra velhota, mas essa filma em uns bons pares de K a mais então vamos de el capitalismo foráneo que o mundo ainda é um bom lugar para se retratar:
Quintal de casa, onteonte. O carvalho não é mais, foi. Agora é uma ossada de madeira majestosa. Memento mori para os outros amiguinhos ao lado que não podem sair de perto do mortinho porque as raízes são muito profundas e mudar sói que dói.
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Esse descaso me faz abandonar muitos dias bons no cais da melancolia.
Aquelas pessoas rôtas não me conhecem mais. Não conseguem mais distinguir qual o meu real significado de vivência. Existi em um mundo ignorado que apenas me mostrou que o ignorado era eu no mundo. Lentos e lentos mundos desconexos em pensamentos que ainda assim não me deixaram despedir do caixeiro ou daquela rica donzela do café das quatro.
Era tudo falso. Nunca não existiu.
E isso não foi criado à toa. As letras não vagam sozinhas.
Calderon de la Barca diz:
“que farão pelo que ignoro
se pelo que sei me enterram”.
Amanhã eu mudo.
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a ossada que reflete o sol, tal qual a lua no céu