Existiam dois velhos simpáticos na minha cabeça. Um era senil e realista, cheio de manias simplórias e vícios bestiais. Coisas simples, como tomar banho de chinelos de dedos para não levar choque de chuveiro elétrico através do registro desgastado ou então a pavorosa teimosia de cobrir os espelhos para não chamar raio em dia de trovoadas.
O outro velho era o engraçado. Mergulhado em mentiras e desatinos, sentia-se muito bem e à vontade para contar lorotas mirabolantes. Gostava de relatar histórias e feitos que vivera, com realismo de detalhes beirando sempre o perfeccionismo. Mesmo não as tendo vividas. Todos gostavam dele. E no fundo, sabiam que era apenas um pobre e doente velho contador de histórias. E que já não conhecia mais o passado vivido, tantas e tantas voltas seu passado se embaralhou.
Dia desses o velho senil e realista morreu. foi um suspiro mais longo que uma baforada de cachimbo. Ninguém deu muita bola para a coisa. Ele tinha poucos amigos e nenhuma família. Era ele quem administrava as peculiaridades de comprometimentos e constâncias agendadas, as contas do bar do Tino e os saques das aposentadorias.
Hoje cedo, o velho mentiroso engraçado morreu. Foi um choque, ninguém esperava. Na verdade ele já estava velho, todos esperavam, mas não queriam. E o querer era como um escudo onde a camuflagem da fragilidade da vida se mantinha intacta e sem vínculos com a realidade. Uma das vizinhas fifi das fofocas disse que casal velho é assim mesmo um morre o outro não se aguenta e descamba pras desencarnações. O marido dela morreu uns cinco anos, era um velho. Ela é velha. O velho – agora o engraçado – e o outro velho – o senil e realista – não eram um casal. Não faz sentido.
Enterro simples, com cruzinha de madeira. E uma pedrinha aqui jaz vai em paz da terra nada se traz velho assaz saquaz. E mais nada.
Agora sobram duas cadeiras vazias. Bem surradinhas, de pinus seco que range quando se deita o peso das bandas da bunda.
E no final das contas, esses dois velhos tocavam algumas ideias mirabolantes que me uriçavam. Um tinha os culhões de mentir descaradamente. Outro, doutrinava a constância verbal nos escritos. E pagava o seguro do carro e a pensão privada. Entendeu a mudança toda? Morreu o realista, a vida desregrou. Morreu o mentiroso, os contos e publicações deixaram de ser mágicos e sensacionais.
Restou-me a tarefa de substituir aqueles dois velhotes. Substituir velho de cabeça é igual ter que comprar um cachorro novo depois que o velho morre. Achei dois novos asseclas, ambos corpulentos, rejeitados outrora para a função. Um de cara angulada e dentes separados. Outro, um sujeito que gosta de girar uma moeda pelos dedos.
Um, alcoviteiro; outro, copidesque.
O alcoviteiro — quem diria! — mora na alcova de um velho lupanar de idéias rôtas. Um fodido sem futuro. Mas cheio de galanteio. Algoz e viral.
O copidesque é um sonhador. E, por sonhar tanto, esquece-se da realidade insensata.
Dois trôpegos tortos e imbecis. Gentalha de uma sociedade cheirosa à lavanda. Sobrevivem de imagens onde azulejos são encardidos e verdes, canos rangem as paredes e cachorros lambem os sacos. Comandam macacos. Redigem insones e atordoados. Ilustram figuretas vencidas. Fumam derby sem filtro, bebem cachaça batizada de anidro, assam pacu na telha de amianto porque a de barro não tem.
Dois putos escritores de newsletteres, agora, como queira. Ou cartinha virtual para você que não fala o anglicólico. (feat. chico raiz)
Aquele alcoviteiro tem na pressa a razão de viver. Morre de fome todos os dias. Fecha os olhos em atalhos de sentimentos ou respira à manivelas. Os olhos, os risos e a preguiça não convêm.
Ao homem que tem na pressa a razão de viver, boa-sorte. Não existe velocidade, os bons morrem cedo porque erraram a curva 12.
Hugo Pedra, sempiterno canalha frequentador das rodas artísticas fluminenses. Personagem de nome fácil, seguindo a brilhante edição publicada por Braulio Tavares (IN: Mundo Fantasmo) onde lança ‘O nome é o rosto verbal do personagem’ na primeira linha de argumentação.
Hugo Pedra é meu personagem do dia, do meu livro que nunca saiu da vontade para a execução.
—
Hugo cantarolava baixinho uns versos desconexos, sempre com seu caderno espiral sem capa dez matérias desgraçado de tanto apanhar em mesa de bar. No bar ele estava. Bar do Bochecha, no mesmo canto eterno onde seus amigos boêmios todos já alçaram vôos artísticos. Hugo não. Hugo era tal e qual a mola da encadernação do caderno, com ferrugens de oxidados por contato de cervejas. A mola não era helicoidal mais, surrada de batalhas perdidas. Folhas empenadas por uma quantidade sem fim de umidades etílicas, riscos agressivos de caneta falhenta e a miríade de anexados entre cada folha pautada.
Brigava com o violão entre acordes e cifras:
Tudo que é belo
está
além
do meu libelo.
“Ficou uma bosta.” “Vai tomar no seu cu, bochecha de bunda seca” Uma risada deliciosa tomava conta do bar, de voz forte e dominadora, um tom amadeirado como um oboé que só aquele mulato da regata rusguenta e pano fedorento no ombro sabia cantarolar. Era uma risada musicada, ritimada, cadenciada de surdo 2x1 em enredo da estação primeira.
“Minhas memórias pelos 40 anos de revolução musical, um pedaço
da febre que tocou H.Pedra, revoltado com o fim da era mágica.” Que nome escelente para uma auto-biografia. “Escreva sobre aquele seu amigo pintassilgo” “🖕” “o malandro te abandonou, bicho”
Amigo pintassilgo.
Bochecha é um disparate. Mas tem razão aí.
Pois bem, capítulo primeiro: Hugo X Agenor. Agenor, que nome mais inverossímil. Pedra X Caju. Caju ninguém conhece, parece nome de vapor. Vai de apelido comercial mesmo:
1984 - Hugo conhece Cazuza em festa de Nelson Motta, executivo da Som Livre, numa cobertura em ‘Copa’. Dá um murro em Frejat sem querer, transa Marina atrás de um biombo japonês. Gasta as doze poses da Rollei com Lucinha que tem as ventas esbranquiçadas de pó. Diz a expressão “vida, louca vida” que inspira um drogadicto de alcunha Lobão.
1985 – Pedra e Cazuza em Ipanema com camisetas Speedo de mangas cortadas, óculos de plástico fenestrado verde-limão e faixa na cabeça, idem. Tornam popular no Rio a frase “vambora rapêize!”. Bolam “Pro Dia Nascer Feliz”, baseada na história de uma amiga de Pedra que o fazia virar a noite.
1987 - Num show de Cazuza no “Circo Voador”, Hugo pede uma música ao seu amigo para, nos bastidores, dançar coladinho com Paula Toller. Sussurra de forma errada a letra: “solidão a dois de dia / faz vapor depois calafrio” mas mesmo assim, consegue arrebatar um beijo da cantora que, doze minutos depois, ao cair em si, dispensa o nosso performer.
1988/89 – Fase ‘eu-sou-um-cara’. Hugo faz sua primeira cirurgia de implante de platina em septo nasal. É a ressaca do final dos 80. Em uma das raríssimas aparições em palcos, Hugo toca o solo de sax em “O Tempo Não Pára” no último show do seu amigo. Muda-se para N. Iorque e processa a banda Barão Vermelho.
DIATRIBE
(“la vie en close” |
disse com pesar
depois de ajoelhar
diante do altar
final de todo ébrio)
as notícias eu não darei
o inverso também não quero
as notícias atravessadas
já bastam as que eu sei
não me ligue, nem me fale
não me assombre, nem me peça
não me tire o que me resta
não impeça que me cale
“maintenant je m’en vais
rêver à quelque chose:
sur l’écran, l’éclat
de toute la vie en close”
– Hugo Pedra
Teu erro é achar que esses velhos morrem. É a gente que se transforma neles. Daí procura, perguntando "Ué, cadê o velho que vivia aqui?" e o reflexo no espelho responde "Olha ele aí."
acabei de descobrir o que é stricnina haha