0021/ Os futuros improváveis do Prof Italia.
Ghana | Mandioca azangada | Um livro de graça.
É reggae, mas é Ghana. Aprendi muito de dub e reggae aqui no UK; Brixton me ensinou muito. O destrinchamento cultural gigantesco extirpou a Jamaica e globalizou a narrativa. Vai vendo:
Have no fear of perfection - you'll never reach it.
— Salvador Dali
"A mandioca-dôce pode de repente virar azangada (...) vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas".
De vez em quando deve-se dar trégua aos censores (*editor, grafe esta palavra com “c” mesmo) e deixar que assuma o leme da caravana um espírito que te leve menos a sério, daqueles que deixam escapar uma risada quando caberia um espanto ou uma indignação.
Falo isso porque tive uma experiência curiosa nos últimos tempos. Contarei como desabafo, nunca como lição.
Acreditem que, certa manhã, decidi fazer umas pequenas modificações nos meus dias; sacos de areia que começavam com despertares torturantes a cada 10 minutos e terminavam com noites enfadonhas de rolagem de tela em uma velocidade constante. Um deserto existencial com amplitudes térmicas gigantescas: do calor da revolta/abuso ao frio polar da indiferença depressiva. Combinação que acabou por fender o teto do meu juízo, agora com vazamentos e sujeito a infiltrações de novas idéias e réstias de razão. Esse ambiente de sombra, umidade e um pouco de energia luminosa é bastante propício ao crescimento de lodo e líquen (mutualismo de pensamento com impulso), um convite para alguns artrópodes originais que formaram um ecossistema que era a exata representação da minha consciência fantástica. Disso tudo nasceu minha nova decisão e então aceitei trocar sapatos por pantufas, blazer por pijama e bom senso por senso comum. Assim, apliquei minhas tardes a tomar limonada com bastante gelo, rir das ilustrações originais de tuiteiros-cartunistas e escutar músicas de 30 anos atrás. Minha maior preocupação tornou-se elaborar uma nova estratégia no Xadrez e, em 4 dias, fui despedido da junta municipal por “abandono de serviço & irresponsabilidade injustificável com o contribuinte”. Como estava embalado pelo espírito da leveza, emoldurei a carta azul num quadro de vidro e dependurei na parede principal da sala de jantar.
Tinha ainda dinheiro suficiente para três meses de vida regrada ou uma semana de esbórnia. Como a sensatez já tinha se esfumaçado do meu córtex cerebral, decidi-me pela opção no. 2. Como um trem que badala seu sino na última chamada, a noite me chamava com a buzina dos automóveis na avenida cinco quadras acima. Era como o bilheteiro que brada “todos a bordo”, o grito eufórico aos passantes na calçada 5 andares abaixo. 23:00h, aqui parte o último carro em direção ao meu detino obscuro.
Da série “Futuros diretores anônimos”
Prof. Dr. Aristóteles R. Italia
*2014 | +2055
Diretor paranaense nascido em Blumenau, iniciou sua carreira como fotógrafo de Instagram na agência de influenciadores Delfos. Foi criador do tiktok mais viralizado em outubro de 2027, um ‘publi’ disfarçado sobre chips de internet de hiper velocidade da operadora micro-digital HABLA, em que clientes sem cabeça perambulavam por uma cidade do meta universo até encontrarem suas cabeças coladas nos aparelhos de realidade aumentada da empresa; também é de sua autoria o vulgar comercial das óticas Pereira em que a visão do cliente seguia sempre desfocada até colocar seus óculos de realidade-ficcional no desfecho.
Cursou cinema na Universidade de Curtas Digitais Curitiba (UCUDICU) e iniciou uma razoável carreira nos curtíssimas-metragens (≥15s), filmados em pé (a câmera, não o cineasta) dentre os quais se destacaram ‘Puerinecro’ (2031) onde víamos bebês que iam ao cemitério escolher cadáveres para adoção, e ‘Além da Tela’ (2034) esboço de roteiro policial onde atores treinados, contratados para cada sessão, interpretavam os personagens no momento em que, segundo o roteiro, eles atravessavam a tela e interagiam com a platéia; pessoas do público, na verdade outros atores disfarçados eram baleados e mortos no tiroteio do final.
Amparado por algumas críticas razoáveis, conseguiu contrato na produtora 4321 e depois de muito lutar por patrocínio lançou seu primeiro longa ‘Espectador’ (2029) no sistema de stories interativos; foi um fracasso de público e dividiu a crítica. A trama tratava de uma caçada policial básica, pano de fundo de conflitos amorosos, o grande diferencial era que em todas as cenas a câmera sempre era posta muito longe dos atores, de forma que se tornava impossível reconhecer seus rostos. A história era transmitida ao espectador através dos comentários dos figurantes que, mais próximos da câmera, teciam comentários sobre as ações dos protagonistas ao fundo, compartilhando áudios em velocidade aceleradíssima no Zap. Aristóteles chegou a se defender alegando que as histórias da vida real eram sempre assimiladas como no filme, de forma distante e reverberativa e que – como na cena em que o detetive chora diante do corpo da noiva – o sofrimento interpretado pelo ator e assistido de uma posição próxima jamais soa verdadeiro, ao passo que distante e filmado em péssima qualidade igual os videos compartilhados com frequência, a dramatização ganha autenticidade.
Caindo em desgraça, ainda pôde rodar mais um longa, jogando todas suas fichas no que seria sua reabilitação. ‘Uma bala’ (2054) foi seu último filme. Estreiou no aplicativo Camadas (o que troca a câmera interativa a cada contraída de pupila do telespectador). Na trama, uma matadora de aluguel em fuga munida com apenas uma bala no tambor esperava, no alto de uma montanha, a chegada do assassino que viria para matá-la; enquanto isso refletia se com sua unitária munição valeria a pena tentar acertar o inimigo através de uma grata sorte, correndo o risco de receber uma morte lenta e dolorosa se falhasse ou acabar tudo através do suicídio. Neste ínterim um anjo discutia com ela sobre o significado da vida. A película não tinha final. As contraídas de pupila entraram em uma confusão de troca de cenas e embolou toda a trama. ‘Uma bala’ foi mais rechaçado ainda que o trabalho anterior pela crítica, quase unânime quanto a lentidão e prepotência da obra, além de bater recorde de menor público em muitos anos.
Cansado do cinema, voltou a morar em Pinhais (um hiper-bairro do estado de Curitiba; região Nordeste do recém emancipado país Brassühl1 onde resignou-se a trabalhar como editor-reels de dancinhas sociais em festas de casamento e batizado, além de publicar uma coluna semanal de dicas de filtros em voga no substack local.
Morreu prematuramente de atropelamento de patinete elétrico antes de finalizar seu livro “Dando a cara ao tapa”, o qual já vendia via correios na periferia de American-Braznorth2 mediante o pagamento antecipado de 100 réis em selos novos.
O final ingrato é a desistência solitária. É o esquecimento tomado pela razão. Arquivar é esquecer. Publicar é esquecer. Escrever para a internet é a forma simplória de ignorar tudo. É a ignorância de simular tudo o que nunca foi, a expressão dos sonhos apagados um a um. A beleza do diálogo rebuscado que ninguém fala mais. De uma simetria forçosa que artificializa a delicadeza real.
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Perdi um inscrito, meu ‘dashboard’ xisnoviou. E isso afetou meu humor de maneira bem insípida: uma unidade de leitor desinscrito é uma queda de 7% no total dos asseclas aqui no nosso canal de inutilidades.
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Agora meus investidores querem comer meu coração na ponta da faca.
Em 2041 houve um levante separatista chamado @Sul_Mein_Pais, criado por IA e fomentado por jovens políticos, que culminou na separação da região sul brasileira. A guerra não foi bem uma guerra porque os outros estados concordaram com a proposta, inclusive levantando um muro triplo de 19 metros para o bom isolamento e desenvolvimento independente.
American-Braznorth, antigamente conhecido como ‘União dos Estados Unidos do Brasil’ e na sequência ‘República Federativa do Brasil’, é uma nova pátria seguindo a tendência globalista dos grandes países apadrinharem e patrocinarem países menores. BRZ tem o patrocínio platinum dos Estados Unidos da America, patrocínio gold da Republica Salvatrucha del Mexico e conta ainda com diversos investidores anônimos, os Blue Angels da Capa Azul (BACA).
Curti a mandioca azangada e o futuro distópico onde morrer ainda é analógico