Ora, ora! Se não é o Substack em português! Acho que perdeu o bonde, mas tudo bem.
Para ler ouvindo uma banda que se chama Adult Books. É a temática do zine de hoje.
Sou viciado em sebos. Desde muito jovem tornei o hábito do usado-semi-novo como um norteador cultural. A grande maioria dos meus livros, discos e CD’s que comem um pó espesso nas minhas prateleiras domésticas foram garimpados e pinçados com muito cuidado e curadoria.
O confiteor do hábito da compra de segunda mão não foi escolhido pelo teor cultural ou pela veia da sustentabilidade dos recicláveis notáveis. Era, desde sempre, a comodidade do combate aos preços que não calçavam as luvas do meu orçamento.
Livros clássicos – que sempre foram clássicos - não baixam preços em edições novas. O conteúdo é o mesmo de 12 edições passadas. Tem uns impropérios de linguística como as reformas ortográficas de 1943 que matou o ph e o duplo-m e principalmente a de 1971 que comeu todos os chapéizinhos das vogais.
As livrarias de livros novos trabalham com a rotatividade, a novidade e o sucesso. Alguém tem que pagar a conta de luz da La Marzocco desregulada na temperatura de extração. A livraria precisa ser instagramável e confortável.
O sebo? O sebo é o sebo: seboso, fede livro velho, poeira, carcaça de traça. O dono é um intelectual malamanhado e embrulhado em um cardigã porque ele sempre tem um pequeno frio inconsistente. Os livros são empilhados, sem muita lógica ou capricho, empenam capas, quebram as espinhas.
A diferença entre os dois comércios é a improbabilidade. É o caos e a sorte. As livrarias modernas são sistemas lógicos, dos catálogos, com estoquistas, rodando tendências. Você sabe o que vai encontrar ali. Pressão editorial, jabazinho, sarau do youtuber famoso. O cheiro da tinta prensada, a impecabilidade das linhas exadas das lombadas que farfalham vernizes. A agenda cheia e divulgada em formato de reels balançando a bundinha no insta. O desespero dos livros que foram embalados no plástico porque não vendem – o que para mim é a melhor lenda urbana de livraria grande e autor flopado que gosto de flutuar.
O sebo tem volumes aleatórios da Barsa de 1956, com tipografia prensada numa Heidelberg afiadíssima. A coleção de um velho leitor qualquer que morreu e a família vendeu à quilo as preciosidades porque ninguém ali era letrado mesmo. E que talvez seja só um repasse que me torne o próximo velho que morreu e que um jovem nascido em 2073 compre meus livros com a mesma emoção que tive quando achei as pepitas perdidas no meio das toneladas de papéis amarelecidos por acidez natural de celulose.
Comprei em um sebo um livro que eu achei esteticamente bonito: Grande Sertão Veredas que na época rondava mais de mil miles a versão original. Pois bem gastei, 15 anos depois, 1/15 do investimento. Quinze quinze. O Menino no Espelho, uma edição especial fora de comércio, impresso para a MPM Propaganda, numerado, de 82. Estava em uma prateleira no Chaim de Curitiba. Autografado, dedicado. Eu teria pago uns cem miles e me custou dezenove.
Esse video entrega em meu coração uma paz quântica existencial. Sou do time do gibão, sempre.
Aqui entra a minha teoria da pirataria elegante. São raspas, restos, coisas que já viveram e agora regozijam uma estagnidade estável que não mais é interessante para o autor ou a editora.
É o comércio fora dos royalties. É a venda sem o repasse, é uma nova negociação que foge dos donos, dos mantenedores da honraria, dos detentores do valor de negócio.
Não pago o que devo ao músico, não retroalimento o soldo do escritor. Eu prolongo a vida da obra que já estava sem vida na renegociação ou pior, retornara ao ponto-sebo por algumas vezes, imponderado; deixou de existir um dia, mas que não foi e nunca sera obliterado de todo.
Eu tenho os autores como uns odiadores de usados e negócios de segunda mão. Não sei ao certo que são, mas aqui no fundo do meu âmago incendiariam sebos com tochas, se assim lhos fosse permitido.
Conheci muito autor novo na caixeta ‘qualquer livro R$5’. Já retornei livros para sebos, já doei livros para bibliotecas justamente porque não doeu no meu bolso raso. Já ganhei livro sem capa porque levava outros exemplares e o livreiro compadeceu (comigo e com o livro descapado).
E a pirataria cultural passa dos volumes fisicos sonoros e impressos. É forte e combatida na virtualidade da teleinformática moderna.
Um pequeno prolegômeno para situar a minha carreira de pirataria: a nova tecnologia me acompanha desde os 9 anos de idade. A sede por novidade sempre me fez descobrir novos mundos. Eu tinha um PC isolado em casa. Não existia internet. Não existia BBS. O DOS rodando como sistema operacional era, para mim, algo que qualquer pessoa tinha em meia-dúzia de disquetes em casa. De graça. Não passava pela minha cabeça que aquilo pudesse ser um software. Pago. “Quem cobraria por um S.O.?” pensava eu. “Olha, Windows 3.1!” “Já viu esse Aldus Photo Styler?” “Tem um melhor, mas ocupa 13 disquetes: Photoshop”. Aprendendo inglês na marra e na tentativa e erro. Jogando Monkey Island com um dicionário ao lado para que o Guybrush não perdesse o coração na ponta de uma espada.
Era sede de conhecimento. Era vontade de criar, de aprender, um mundo novo. Mais programas. Windows95 em inglês, uma semana depois de lançado nos Estados Unidos. 11 disquetes. “Lembre de duplicar o primeiro antes de tudo, ele sempre grava o seu nome na hora da instalação”. Opa. Então é isso?
Um sistema que trava a cópia. Comecei a entender. Proteção para o dono. Mas eu ganhava uma mesada que valia 0,025% do valor do produto. O dilema era grande. Apareceu um pirata comercial na cidade. Ele baixava tudo de uma BBS. Eram mais de 6 horas diárias, conectado por DDD. Sabe quanto isso custava por mês? Nada. Aprendi o termo phreacker. Ele era um. Burlava o sistema de telefonia adulterando a central telefônica local e o sistema de conexão regional.
O cara da Discolândia mixava fita cassete com dois toca-discos e canal cruzado. Ficava profissional. E não precisava comprar os 18 discos que compuseram a trilha, não é mesmo? O Paraguai era ao lado. O Brasil era trancado. A alemaozada da colônia trazia novidades da Europa. O Lego era Hering-Rasti. Roubava internet RNP de faculdade. Não existia internet civil, amigo. Engenharia social para roubar senha de professor. Agora sim, internet via modem e pulso único depois da meia noite.
Gravador de CD. MP3. Os primeiros filmes. Napster, Limewire, Audio Galaxy, Torrents. Relógio de pulso máquina Citizen fabricação Kazakh. Sim, aqueles putos da Baikonur Cosmodrome perderam o emprego com a queda do muro. Mas não perderam a precisão instrumental.
Foi uma dor comprar meu primeiro software. Era caro, estava disponível no site de piratas há 5 cliques. Eu precisava. A sensação de usar uma licença válida sem ter que escutar aquele midi alucinado no crack de caveirinha de olho piscante era estranha. Tudo nos conformes, atualização em um clique, download automático, suporte e garantia.
Comprei um smartphone. Os joguinhos e apps eram baratos, 0.99. Gostava? Comprava. Nem doía. A mesma coisa com as músicas. menos de um dinheiro cada uma. E assim a minha coleção de 15 anos de garimpo de MP3 foi dando lugar ao preciosismo da legalidade.
A minha vida pregressa era uma fraude. Quase tudo era pirata, falsificado ou comprado com algum tipo de isenção tributária. A feira dos importados, o paraguaizinho, o camelódromo. Diferentes cidades, diferentes nomes, a mesma situação. Centros da mais pura pirataria, a foto da identidade da maioria dos brasileiros. Eu era infestado, tomado e possuído por um pirata dos mais escusos. Jolly Roger era meu Robin Hood. O porta CD do carro era carregado de mídias gravadas. Eu tinha impressora de CD (imprimia a arte em cima daqueles CD’s brancos) para você ter ideia de quão sério era o sistema.
A pirataria afetava minha vida profissional. A ética era jogada no esgoto quando um diretor de arte pedia para eu reproduzir uma propaganda velha de anuário. Ou quando o cliente pedia um site exatamente igual ao que viu na gringa. A foto roubada do banco de imagens e a marca d´agua apagada depois. Tudo com o consentimento de quem tinha o dinheiro disponível.
Eu tinha carteirinha estudantil da EICSC – Escola Internacional de Comunicação Social de Curitiba. Pagava meia. A escola nunca existiu – ou existiu nas impressões térmicas de smartcards – que eu gerava para familiares e amigos. Tinha logo, identidade visual, etiquetas de semestre sobrepostas.
Mudei para outro país. Vendi tudo o que tinha e recomecei do zero. Em um lugar onde a pirataria é velada e combatida na chinelada. Comprei um computador novo, muito mais barato e acessível. É na gringa né, tudo é mais barato e acessivel. Uma assinatura de filme por demanda não pesou o orçamento. A outra assinatura de música foi uma mão na roda. Ganhei um pacote pessoal da minha suíte preferida de programas. Comecei a comprar em banco de imagens para o trabalho. Fontes. Scripts. Templates, músicas e royalties de trilhas sonoras. Comprei um protetor de tela de $8. E foi o ápice da minha redenção. Confesso que procurei antes nos torrents. Mas até os torrents são bloqueados por aqui, precisam de VPN e mirror para não serem barrados. Ou ser preso por pirataria. Ou pagar multas. Cansa mais do que compensa.
A vida no lado certo da fronteira das coisas originais é mais limitada e difícil. Hoje eu olho para o passado e tenho sentimentos contraditórios. Conheci muito de segurança de rede, internet. Farejava malware e crack viruento há milhas de distância. Minha base criativa veio de muito programa gráfico pirata. Aprendi 3d em programas que custavam mais do que um carro, na época. É vergonhoso. E ao mesmo tempo imprescindível. Hoje é mais fácil se enquadrar na legalidade do que no passado de cidade de interior.
Não tenho como me arrepender em nada. A pirataria moldou o que sou e como cheguei até aqui. Não tenho mais controle dos meus filmes preferidos. As plataformas resolvem tirar da prateleira meus filmes preferidos e eu fico apenas emburrado, pasmo. A plataforma de música briga com o músico fudido que eu gosto e eles removem meu album preferido. Tenho que recorrer para um bootleg fedorento no Youtube e nem assim eu me desespero mais.
O problema é a falta de limites que a curiosidade infanto-juvenil carrega. Essa, amigo, não tem fronteiras.
Nem um puto no bolso.
Interessante pensar nos sebos como uma pirataria elegante. Confesso que nunca tinha pensado no aspecto do artista não receber mais nada enquanto a obra dele circula. Só enxergava vantagens porque pensava na economia circular (consumir o recurso que já existe ao invés de produzir mais) e na propagação de cultura que, na minha opinião, deveria ser incentivada. Lá vem você me apresentando mais um dilema :'D