Talvez nunca tivéssemos voltado.
conquistador barato | torpedo tim | terror | barbaquá | carijo
Descobri que tem a função ler o texto aqui audio book locução de radialista barato. Não acho uma razão para alguém preterir a leitura e escutar uma narração, mas vá lá: vou gravar essa joça ver no que dá. É SÓ UM PILOTO MEUS QUERIDOS, quiçá 1 de 1.
Bom o meu sotaque é PT-BR freestyle cockney: um troço nativo paranaense, mas matando de leve a porta verde, puxando o trincado bobmarley curitibano e morrendo um pouco na neutralidade da consciência brasiliense de não soar muito sulista: aquela forçadinha do leite quente. Mas eu não consigo de jeito manera o chiado de sorvete. E tem a cobertura do bolo que é bilingual bloody foreigner.
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Para a criançada nova que chegou na internet depois dos anos 10: no começo do século os descoladinhos chamavam as mensagens SMS de «torpedos». Torpedo era gíria de boteco, quando alguém escrevia um disparate macumunado em um guardanapo fuleiro para um possível fufu. Conquistador Barato do Leo Jaime explica isso: “mando mais torpedo do que a marinha americana”
Algum publicitário velho e sebento achou bacana chamar o SMS da TIM de Torpedo Tim e plau a mensagem eletrônica tinha nome e sobrenome.
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Nessa época antiga pré telefonia móvel o mundo era mais parado. Eu tinha ido passar o carnaval na fazenda de um amigo, lá nos rincões do interior do Paraná. Entramos todos, uns 7 ou 8 chapas, dentro de uma rural azul clara, com a estrutura interna amarrada por cordas. Ela tombou em outra aventura e a carroceria estava aparada nesses novos “tensionadores de colunas”.
Essa fazenda tinha como limites uma área verde grande, de pinheirais, intocada ainda por ser uma região montanhosa e de difícil acesso para desmates; do outro lado da fronteira, um pequeno vilarejo de umas 6 casas, uma capela, um puteiro e um boteco.
Durante o dia a gente andava a cavalo, tomava banho de rio, pulava de umas pedras sem muito gabarito. A noite tinha sempre uma fogueira, uns pinhões assados, álcoois e violão. Éramos breacos da velha escola etílica, uns caretas. Como diria o Hacker T. Dog: We're just normal men; We're just innocent men.
Depois do terceiro dia de rotina matuta ninguém mais aguentava pular na cachoeira, comer pinhão e beber cerveja. Começamos a explorar melhor as redondezas. Fomos até o boteco da currutela ali perto. Encontramos uns peões da fazenda, tomamos uns rabos de galo juntos, jogamos sinuca. Em um momento deixei escapar o tédio em prosa e eles nos convidaram para visitar o cabaré ali do lado, boite carinho da noite. Molecada vazando endosperma pelas orelhas. Todos migraram do boteco para a fuleiragem.
Cabaré de interior era sempre um lugar respeitoso, com regras de convívio e um clima de cortejo, um ar tenso e denso, abafado, cheirando colônia barata, cigarro de piteira e sabonete novo.
Éramos uns 7 ou 8 chapas, todos moleques, ninguém ali habilitado para pagar nada além de um baldinho. A gerência era da Dona Setembrina, que também era a governanta da casa grande da fazenda. Ela conhecia a gente e sabia que do nosso mato nem leãozinho-da-cara suja saía.
“Tô sabendo que vocês tão procurando sarna pra se coçar.” Setembrina tinha um vozeirão rouco, pigarreado e craquelado das consoantes retroflexas bem distintas. E de frases sem ênfase alguma, sempre cansadas ou resignadas de uma desistência sem arremedos.
“Primeiro vocês gastem o que têm de dinheiro aqui, vai ali rasgar uma vaneira com as meninas a noite tá perdida mesmo. Quando virar meia-noite venha aqui ter comigo”
A vida ali era meio que assim mesmo a gente fingia que tinha dinheiro; as meninotas fingiam que se apaixonavam de imediato. A gente queimava as moedas, o vanerão comia em um aparelho de som duvidoso e no final das contas nada dava em nada a gente não aprendia elas não capitalizavam a peonada apaixonada se continha em uma raiva desastrosa de um sonho antigo de tirar ela dali.
“Meia-noite, Dona Setembrina” Uns sete ou oito chapas ali debruçados no balcão “O Arcebíades disse que vocês tá procurando. Pois aproveita que é noite de lua, ruma pra picada ali da fazenda velha pro barbaquá1.”
“Uai e o que é que tem pra fazer lá?” “O barbaquá é mal-assombrado, em noite de lua aparece uns troço esquisito lá.”
Acabou que fomos todos, uns 7 ou 8 chapas, andando pela estrada de terra, com uma lua iluminada de fazer sombra na estrada. Não havia necessidade de lanternas, era uma delícia andar em noites assim. A caminhada era um pouco longa, a gente tinha nas ventas a determinação viril da juventude; aquela que encrespa a crina mas gela os cambitos com o tremelique do medo.
O barbaquá era pequeno; tinha ali apenas uns dois ou três valões de tijolos, uma estrutura antiga ainda com as paredes e parte do telhado em pé, mas escurecido e esquecido pelo tempo.
Visitar um barbaquá mal-assombrado é um desafio bem complexo. Precisa ter atenção, concentração, os dedinhos cruzados ou a figa enrolada na munheca. Mas são sete ou oito cabas. Não é qualquer visagem que aparece pra uma caterva desse porte. Mas também qualquer sombra ou galho estalado e lá vem o saci, um grito é a mula e uma folha roçagante pega um lacrau nas calças.
Entramos por um dos túneis de alvenaria que levava adentro da ruína. A escuridão era completa ali. Ninguém tinha lanterna e não existiam LEDs nem celulares com luzinhas. Foi um pouco frustrante porque não se via nada: “Interessante que era para entrar alguma réstia de lua aqui dentro, olha esse telhado todo fudido” E o telhado era todo fudido; e dava para ver a lua. “Uai, dá pra ver a lua, tinha que ter um pouco de luz aqui dentro”.
Para encurtar: apareceu mesmo uma visagem.
Não sei se era alma penada ou assombração, mas era uma luminosidade difusa que não gerava sombras. “é o fogo-farto, aquele peido de banhado que pega fogo” “verdade a indiarada chamava de boitatá” “cara esse troço tá parado” “não é fogo-farto é fogo-fato” A luminosidade era fria; difusa, não era fogo ou rastilho de centelha de fogueira de cigano. Estava atrás de uns carijos2 trançados e rotos de taquaras secas, de esquina com uma parede grossa de adobe.
A gente foi andando devagar, passo-a-passo. A lua não iluminava nada. Essa luz difusa não ajudava. E apesar do medo etéreo, o medo material também era grande: o chão, podriço e de madeirame velho podia ruir e a gente varar para o porão.
Pelas brechas do adobe vazava um pouco mais de luz, e a medida que nos aproximávamos a luz tornava-se mais quente e avermelhada. Víamos então diante de nós um círculo vermelho, que em certo momento pareceu uma fogueira, mas de movimentos grossos e lentos, espessos, borbulhosos; uma fogueira; mas vista de cima, e que se flutuava como um coco a deriva em um oceano de calmarias.
E fomos chegando perto e mais perto. E nada de luz e sombra só essa claridade esquisita que não era fogo, que não esquentava, mas que se expandia com a nossa proximidade em uma sincronia dissociante. Não era fogo; tinha algo hologrâmico, fractualizado em uma textura bem delicada e bela; um translúcido impalpável.
Confesso que esperava o primeiro cagalhão correr de medo para eu disparar junto em debandada anti-heróica. Mas não, todos ali hipnotizados, os sete ou oito extasiados; em silêncio sepulcral porque aquele barbaquá tinha na conta gente morta, tinha na conta profecia do João Maria; tinha mandinga braba de escravo bruxo e tinha raiva de capitão do mato reverberado e incrustrado naquelas paredes podres.
E a cada passo para frente mais a luz se aproximava, e como uma tensão líquida de uma bolha essa luz se acondensou e nos envolveu. E então essa luz agora bem avermelhada, punha os barbaquás e os carijos e os sacos e o madeirame daquele barracão em um movimento lento, quase distorcido de uma densidade luminosa que agora encandecia todo o ambiente; e tudo se desdobrava de maneira orgânica e densa e pesada; não havia barulhos, nem sequer o som respirado pelos sete ou oito ali; acho que todos estavam transtornados e maravilhados, mas o ar ali era denso. Era difícil, um ar denso e úmido e inodoro, um ar sem gosto.
Eu não sentia medo. Não sentia paz, nem dor, nem nada. Eu não tinha senso de sentimentalidades, nada me focava ou me deixava concentrar. Era como uma anestesia mal aplicada de limites reais e delirantes. Um sentimento de sossego, uma afasia que imobilizava, uma desaceleração de tempo, pulso, pensamentos, quase que nos preparando para o que viria a seguir. Não me dei o trabalho de saber ou perguntar aos outros se aquilo tudo ali estava realmente acontecendo, mas a verdade é que a transcendência genuinamente operava mais forte do que os instintos físicos e conscientes.
A luz esmaeceu. Dissipou-se lentamente, e sumiu como um vaga-lume de um vôo errático. Estávamos todos deitados naquele chão poeirento de madeira. Agora tinha luz da lua confrontando a visão. Agora tinha a luz da lua, criando sombras das frestas das telhas no chão.
Levantamo-nos, alguns dos sete ou oito ali, dificultados, lentosos, desvanecidos e trôpegos. Alguém me estendeu a mão, e com um tranco me ajudou a ficar em pé. Não bati a poeira como sempre faço. Descemos os degraus até a frente do barracão velho, seguimos uma caminhada silenciosa regada por uma luz da lua iluminada de fazer sombra na estrada. Os pés formigavam, as juntas doíam, o peso do corpo estava muito estranho e mais denso, mais carregado. Tentei começar uma conversa ali mas ainda estava atordoado e aéreo; não conseguia construir frase alguma para materializar em voz. E ninguém ali quebrou o silêncio da caminhada do retorno. Uma caminhada lenta, compassada, triste.
Encontramos o Arcebíades na entrada da fazenda. Sentado em um mourão caído, como se nos esperava pacientemente. Enrolando uma palha com uns ciscos de fumo amassado na palma grossa da mão calejada. Com um olhar transtornado, seco, féreo. “E não é que voltaram, seus putos!?”
Continuamos a andar, ele se juntou ao bando. Éramos uns sete ou oito ou nove.
Talvez nunca tenhamos voltado daquele barbaquá; essa é uma possibilidade que me assombra desde então.
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O Capote e Capelo era o traje característico da indumentária açoriana e foi, durante muito tempo, o traje tradicional da mulher. Peças obrigatórias do dote da noiva, serviam também como traje de noivado. Uma tradição mais abastada que veio – olha só – emigrada dos flandres.
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Barbaquá é um jirau de varas sobre forquilhas, onde se estende a erva-mate para sapecá-la com fogo. E se você não sabe o que é um jirau, gire daqui.
carijo (não confundir com carijo) é uma espécie rudimentar, menor e de origem indígena; o barbaquá original, por assim dizer.