Tenho uma playlist que se tornou um monstro de 1200+ músicas para se tocar na sala de estar com seus amigos e pingas em copinhos pequenos:
Meu Spotify tem um problema sério de temporalidade. As playlists semanais são uma salada-russa e a cápsula do tempo me define entre 20 e 94 anos de idade. Vai vendo.
Sei que é bem resmunguinho de velho saudosista mas eu sinto falta da Internet.
A internet 1.0, a internet raiz, o primeiro amor. A internet que saiu da complicação da comunicação via código de bbs em ASCII, modulação e demodulação e adentrou firme na riqueza do HTML purulento de gif animado e clique visual. Uma internet acessível, finalmente.
Minhas primeiras conectadas foram lá por 96, era uma dificuldade conseguir uma linha e um provedor. Era tempo de Geocities, as páginas com endereço engraçado, os gifs intermináveis. Era a estréia do UOL, ZAZ, Mandic.
Não tinha termos de uso, a anarquia comia solta. Os fóruns eram colaborativos; todos viam e construíam uma internet sólida com achados e adaptações. O mundo virtual era colaborativo. Era respeito natural. Um mundo digital cheio de problemas para se solucionar.
Aliás um usuário realmente conectado, constantemente pregado na internet era visto como um sujeito estranho. Muito estranho. Nerdóla. Gente para evitar em MIRContros.
Do outro lado, existia uma espécie de sociedade pessoal mesmo com a impessoalidade da tecnologia. Ajudei uns Australianos a se reconectar com parte da familia perdida depois de 40 anos. Instalei a internet para o vovô, para se ter ideia. Conheci uma brasileira que morava no Japão e que se apaixonou por um desses caras ‘altamente-conectados’ da fala embolada; ela queria largar o marido, o shiba e a RAV-4 por um coração desregrado.
Arrumei emprego para o desgraçado, ele morreu de complicações venéreas estranhas. Ela ficou devastada; aliviei a barra do falecido como um post-mortem digno; acho que os dois descansaram, um em paz e a outra resignada.
A internet deixava a gente ser muito mais anônimo e ninguém percebia a fundo essa linha de liberdade. A internet era baseada em paixão. Os sites amadores seguiam na linha pessoal, do cuidado, artesanal.
As redes sociais eram alguns fóruns mais específicos. Os namoricos eram bate-papo, nos portais, no IRC, tempos depois no ICQ e MSN (uma espécie de WhatsApp). Talvez a primeira descolada de personalidade real e virtual.
Era um território de boas descobertas, promessas e o início de um mundo com um potencial monetário infinito. Seus amigos virtuais eram pessoas que compartilhavam incertezas, desconfianças e segredos pessoais. A ideia de avatar, de multiverso, da virtualidade; tudo ali na forma mais crua e primitiva.
Nada era entregue de maneira automática. A internet era reativa e te fazia garimpar os resultados.
E esse é onde o meu impasse com a internet atual bate de frente. A desilusão do ponto limite sem volta. O mundo digital caótico, milimetricamente fatiado, monitorado, monetizado, otimizado, entregue segundo o algoritimo. O sistema de suposições do que é melhor para seu consumo.
Tenho uma impressão de que ninguém mais liga para o sistema colaborativo que embasou a internet. Os fóruns tem muita coisa antiga, a maioria dos sites são serviços ou conteúdo para engajamento. A privacidade morre a cada biscoito gravado, a personalização, a Inteligência Artificial que adivinha seus gostos não porque ela é uma necromancer encantada do reino do lado de lá mas sim porque ela lê os milhões de micro-compartilhamentos que seus rastros de migalhas deitam no chão.
A internet sempre foi um reflexo da sociedade, e continua sendo e se provando como tal. O espírito dos pioneiros, desbravadores e dos criadores meio que se perdeu nessa transição dinâmica do que eles mesmos criaram. E esse mundo novo criado transformou a internet – outrora global e sem fronteiras – em um jardinzinho cercado dentro do que a gente conhece e só.
O Reddit tá indo para o mesmo fim. Twitter (ou 𝕏) também segue as mentecaptalidades caóticas do Musk. Eram espaços bacanas mas que hoje se adaptaram ao lodo dinâmico descontrolado reativo.
A Juliana Cunha meteu essa:
Essa conversaiada toda cansa. A adaptação de tudo para seguir a moda deturpa o meio; só ver o Instagram, aquela rede das fotos quadradas com bordinhas legais: não tem fotos, não tem mais as bordinhas legais. E isso cansa muito, e eu cansei de tentar fazer a diferença nesse meio.
A gente meio que desgastou tudo, chupou até o caroço e o bagaço que restou insiste em largar uma barra de rolagem infinita onde a internet – para muitos – é o facebook (ou a rede social preferida) e o pior, ela é movida com o balançar de um único dedo que empurra os videos para o lado ou as fotos para cima.
Ou o zap, que se você não responde o outro lado da linha na hora é porque provavelmente faleceu, foi sequestrado ou odeia o requerente.
E isso tudo só aponta igual ao cachorro perdigueiro para onde eu estou que é o buraco dos resmungões. A internet mudou, eu mudei, aquele passado não existe mais e eu sei que muito desse suco de interesse não faz mais sentido porque a molecada hoje em dia já nasceu com a internet conectada no rabo e não tem mais essa percepção de que o meio virtual chegou para mudar a vida quotidiana: a internet apenas é, a internet existe como a luz elétrica ou a telefonia, é só mais um serviço, no grosso viver.
Para mim não. Não quereria deixar a minha tão saudosa recém criada fronteira. Eu era pioneiro; eu e toda a torcida do flamengo. Não é exclusividade. Éramos desbravadores, pronto para clamar nossa posse cercada de arames no infinito território virtual. Não apenas interagíamos com a tecnologia. Moldávamos à nossa própria imagem e gosto. Éramos inovadores, criadores, sonhadores. Não apenas usávamos, vivíamos.
E é claro: viramos os coboleiros do fim do século XX, uns dinossauros párias. Não que tenha sido um processo curto e grosso, foi um murchar lento e silencioso. Sem muita firula. Alguns amigos aqui e acolá pararam de conversar nos emails, nas redes sociais. Um apagou o Instagram; outro deixou de atualizar o Face. Razões diferentes, a perseguição da emergente optimização de conteúdo, da produção focada em retorno e cliques. Da dancinha.
Conectar-se era ritual: as vezes a espera por um pulso único depois da meia noite (Meia-noite te conto o por quê). Tinha uma premeditação leve e roteiro: a procura de uma mp3 nova. Baixar um warez, um joguinho novo, ler um forum ou uns artigos em revistas pioneiras; ler a programação dos portais, entrar no bate papo, sala 20-30 e rever o Z3R0-C00L perturbando gente aleatória.
E a internet melhorou muito. A velocidade, a autonomia, a conveniência do cabo. O tempo conectado aumentou, e tudo isso diluiu em muito essa consciência de navegação com carga limitada e resultados otimizados. Acho que o prazer de navegar tenha diluído e enfraquecido a fragrância também.
Os blogs foram sumindo; os fomentadores de textos rebatidos nos comentários, a raiz da escrita micro-envelopada nas pequeninas comunidades de bons escritores anônimos. Viraram páginas de cliques rápidos para monetização, o famoso cata-corno do Daimler. Assim, quase do nada, a parte social foi dominada pelo consumo passivo – rolar com a rodinha do mouse sem parar para respirar. Chegou a miniaturização da ação com o esfregar do dedão de baixo para cima na telinha de bolso.E essa entrega de conteúdo foi uma conveniência que matou a maravilha da descoberta por curiosidade. Sei lá, ver conteúdo aleatório não solicitado, mas que o sistema presume que eu gostaria de ver.
A Internet virou trabalho, virou meu desktop, minha sala de reuniões, tá online tô sim, qual é a senha do server #3, Admin01234, Flw Vlw. Colaborativo, sempre on, pai tá on.
Tem que ver o que o público quer, checa o trend, depois baixa as keywords, tem que ser stories, ninguém mais vê foto no app de fotos. Tem que ser shorts, porque reels é muito longo, ninguém quer ver video lento. Tem que ser 2x porque ninguém tem paciência com gente que fala normal. A internet virou uma peneira de engajamento.
A social-tempo-real tenta me transformar em mais um desse público dismórfico. A internet quer que eu tenha menos paciência, seja menos curioso, mais cínico e perturbado. A internet quer que eu estale o dedo no like, que eu me inscreva, que eu pague para não ver publicidade. A internet é uma rede social, a internet é legião: A internet é muitos, mas em formas de diferentes aplicativos.
E é uma ferramenta poderosa. Muito mais poderosa do que antes, e seu poder cresce de forma tão exponencial e dinâmica que não tem como acompanhar (nem imaginar) Mostrou formas magnificas de amplificar vozes marginalizadas e motivar mudanças sociais brutas. Decidiu eleições, criou monstros, doutrinou gente sã com uma enxurrada de lavagem cerebral nas fatídicas ‘fake news’.
As marcas ganharam voz no meio do consumidor. As marcas ganharam uma cara, um avatar, um mascote, um nome. Criaram uma distorção representativa de humanização de um capitalismo frenético.
Talvez seja já muito tarde para tentar remediar, talvez esse seja o ciclo de vida do meio como produto, uma maturação que começou no sistema colaborativo da inocente descoberta e hoje tenha se tornado um moinho, que vai triturar teus sonhos, tão mesquinho; e vai reduzir as ilusões a pó. Um espelho de consciência inimaginável.
Talvez valha a pena lutar por uma internet que seja menos drástica e real. Mas é o futuro. É o futuro do seu filho que tem um usuário anônimo no Twitter e que ele usa para disseminar ódio e racismo. É a internet que esconde a personagem covarde fake que sua filha se tornou.
Vale a pena insistir? Sejamos aquela geração importunista nos bons costumes. É o futuro, é sobre futuro. E é sobre a forma de como aprendemos, nos comunicamos, nos conectamos. Remodelar o que nos modelou e a chance de fazer o certo que é fazer o bem, bem feito.
Sei lá, quiçá nos tornaremos os caba que almejávamos ser – indivíduos que largaram a passividade e a acomodação. Que forçaram a mudança e notaram a necessidade dela. Influenciadores raiz que não foram influenciados mas que moldaram a internet em contrapartida. Talvez seja esse um processo que traga alegria, interesse, senso de possibilidades e probabilidades. O retorno daquele brilho pálido do abajur no canto do quarto, iluminando o monitor de tubão tarde da noite enquanto todos dormiam.
#FoMO, para quem não conhece, é a sigla de Fear of Missing Out, ou O medo de perder algo [no sentido temporal e não no material].
O medo é claustrofóbico e agonizante. Minha vida é criativa e toda vez que uma oportunidade vaza pelos meus dedos eu tenho uma síncope desesperada. Estou perdendo muito tempo e não sei mais como retomar o caminho certo. Ou até se existe esse caminho, não sei mais.
O relógio não pára. A vida é um cavalo que peita tudo e sorri com aqueles dentão que é mais do que sabido que mordem, ah sim eles mordem. O desgraçado é herbívoro e morde gente. A vida morde gente. A confusão é constante. O caos mistura todas as cores mas chega um ponto em que tudo fica um cinza meio avermelhado, uma cor que é a mais feia do mundo. Eu a chamaria de 'estabilidade vivencial'.
Quem tem estabilidade, metodologia e auto-disciplina já morreu e não se deu conta. É difícil se dar conta quando tudo está impecavelmente automatizado e redondo.
A minha lista-pessoal-de-coisas-a-fazer (V.7.2023 revisada e corrigida) andou pouquíssimo esse ano. Desisti das fuçanhices de Arduíno; desisti de aprender a toca instrumento musical, baixo e violão já estão no mercado das pulgas digitais. Mas muita coisa ficou parada. Outras nem começaram.
E novamente me vejo perdendo tempo e esgotando crivos legais na rotininha enfadonha. É quase um grito entalado. A força acaba e o marasmo te engole. E tudo começa a ser menos resmungos e mais resignação.
O mundo segue horrivelmente bem. Os menores índices de violência e desnutrição, os menores números de mortes em guerras, educação bem, obrigado; e não sou eu quem diz, é um gogó-de-ouro de Oxford quem canta a pedra. A nítida impressão é a de que tudo está desmoronando quando na verdade está se estabilizando de uma maneira mais humanizada.
Criar nova rotina e nova mania é só mais uma marca temporal, não vai reiniciar a sua vida, irmão. Seus desejos são constantes, suas frustrações, desenfreadas. Um objetivo novo não muda o destino daquele caminhão destrambelhado e sem freio pela ladeira da incerteza. Eu preciso de mais forças para continuar o que não deveria nunca ter começado e que agora não tem como não terminar mesmo que isso signifique sacrificar o que era para ser bom e eterno. O mundo é um monstro incessante que passeia as pontinhas das unhas pela lataria e o primeiro que arrepiar ele esmaga.
Ainda em redes sociais: Spotify é rede social, sim. E eu aprendi muita música boa ali. Ottis Redding por exemplo:
O video é de junho de 67, durante o Monterey; morreu o Otis Redding em dezembro do mesmo. Tinha 26 anos de idade, era o mais extraordinário cantor do mundo (praticamente, porque eram quatro), e estampou-se num acidente de avião. (os outros três eram o Frank Sinatra, o Jimmy Scott e o Dietrich Fischer-Dieskau) Se tem um dia que a música morreu em definitivo foi esse. (A primeira morte foi em 3 de fevereiro de 1959).
Espero que nada piore muito nesse tempo que vem mais adiante. Eu juro que tento segurar as rédeas o mais próximo do cavalo, mas as vezes os caraguatás enroscam demais no gibão e não tem peitoral que não se espinhe.
penso que a onda de newsletters é uma tentativa dos dinossauros da internet de tentar recuperar essa coisa colaborativa fora do rolo compressor da mídia social. mas também tá virando terreno de coach que vende conteúdo xinfrim. a colaboração da internet foi mais uma que o capitalismo matou na base do ppc
Pegando o gancho do comentário da Celia, é engraçado esse negócio de newsletter, porque na época dos blogs era uma bobajada: porra, eu vou enviar os textos para as pessoas? Não, eu tenho a página aqui, quem quiser ler que venha.
De repente chegamos a um meio-termo: o google reader veio (a melhor rede social que já existiu!) e daí quem queria texto no delivery tinha, quem queria drive thru tinha e quem queria sentar e consumir no local tinha também. Tinha pra todo mundo.
Então as outras plataformas sequestraram tudo e a partir daí o que não estava nelas, não estava.
Não existia.
Fim e foda-se. Você apagou o seu perfil no facebook, você é uma não-pessoa.
Você não está no instagram? Ninguém sabe da sua vida. Você é um pária.
Mas com isso o algoritmo passou a determinar quem vê o quê. E aí as newsletters voltaram com força, porque quem consome os textos não tem mais paciência pra ficar abrindo urls aleatórias diariamente, e quem escreve os textos não quer ter que se sujeitar ao algoritmo.
Mas aí
Aí os e-mails estão morrendo.
Então como é que vão ficar as coisas?
Uma merda, isso. Esses hubs. Os hubs ou o silêncio, os hubs ou o vazio.